Heloísa Maria Buarque de Holanda (1937-2018), mais conhecida como Miúcha, foi uma cantora e compositora carioca. Entre 1965 e 1971 foi casada com o músico João Gilberto, com quem teve Bebel Gilberto, também cantora. Miúcha morreu no Rio de Janeiro, aos 81 anos vítima de parada respiratória, decorrente de um câncer, contra o qual fazia tratamento.
Em quase 50 anos de carreira, lançou 14 discos e selou de vez o seu nome na história da música brasileira, por meio da Bossa Nova, principalmente. Além do próprio marido, outros parceiros musicais como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Toquinho, etc fizeram parte da sua vida artística. Ela era o tipo de pessoa que estava sempre de bem com a vida. Como confirma sua irmã Ana de Holanda: “Na música, na alegria, no otimismo e na vontade de pensar sempre no lado positivo da vida, Miúcha é um modelo (…). Ela deixou isso de bom para a gente”.

“Se João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes querem dizer alguma coisa no cenário musical, deve haver também um significado no fato de que, embora muitas cantoras brasileiras se orgulhem de ter partilhado o microfone com um ou com dois deles, só uma nunca se cansou de cantar com os três: Miúcha”. Isso reflete um pouco o tamanho da grandeza musical, que herdamos do seu legado.
O musicólogo Ruy Castro, nos assegura: “Miúcha é uma das profissionais mais respeitadas da praça. Quando entre no palco ou no estúdio, sem um minuto de atraso, traz todos os arranjos e letras na ponta da língua. Os músicos sabem que ela se joga por inteiro em cada canção em todas as suas nuances. É como se pertencer a uma espécie de aristocracia da música popular – composta no Brasil pelas famílias Jobim, Caymmi, de Moraes, Gilberto e, sem dúvida, de Holanda” (1).
O convívio profissional entre Miúcha e Tom, por exemplo, “foi um caso de admiração e entrega mútuas e à vista. Os dois se conheceram em Nova York, no começo dos anos 70”. Lá , fizeram a toada (grosso modo, “refere-se à linha melódica de qualquer canção sobre a qual se articulam versos da letra”) Dinheiro em Penca – um dos pontos altos do disco que fora lançado pela RCA – “que Tom começou a expandir a partir de uma letra do jovem poeta Cacaso e não conseguia parar de escrever”. Porém, com quase 20 estrofes, 158 versos e quase 10 minutos de duração a música ficou pronta para ser gravada pelo casal com a participação especial de Chico Buarque, cuja letra é uma combinação de “temas sertanejos das toadas com referências urbanas e sofisticadas”.
Revela Castro que “num dos versos, Tom escreveu: “Uma vez em Nova York/Liguei pro meu feiticeiro/Que atendeu o telefone/Lá no Rio de Janeiro”. Não era uma rima, mas uma solução. Esse feiticeiro existia no Rio e se chamava Lourival de Freitas, mais conhecido como Nero – poque costumava “receber” o antigo e aloprado imperador romano. Nero era um paranormal, perito em beberagens com plantas exóticas e cirurgias com canivetes e facas caseiras. Entre os clientes que se entregavam com total confiança a ele, nas altas e baixas rodas, estavam Tom, Vinicius e Chico, e por último, Miúcha” (1).
Mas, voltemos à canção Dinheiro em Penca. Quando dos 50 anos de existência da Bossa Nova, em 2008, a Folha de São Paulo, lançou uma coleção de Cds de diferentes artistas. Entre eles, este em análise da Miúcha. Das 12 músicas, a interessante composição, ritmo e melodia na interpretação de Tom e Miúcha: Dinheiro em Penca. Aqui a sua íntegra: “O mati é passo preto/Ele é muito tapereiro/Ele canta por amor/Eu só canto por dinheiro/No seu canto tem valor/No meu canto tem vintém/Ele geme a sua dor/Eu não choro por ninguém/Ninguém sabe ir pelo Catumbi/Ninguém sabe, ninguém sabe/Eu casei com ela/Fiz um filho nela/Amei muito ela/Fui feliz com ela/Se o santo cai do andor/E o barro cobre o ladrilho/Quem roubou o meu amor/ E me escondeu do meu filho/Renda de filó/Carretel de linha/Jorro de cascata/Canja de galinha/Sino de Belém/Mofo de farinha/Vou cantar agora/Uma prenda minha/O mati ao meio-dia/Tá piando no soleiro/Ele canta na estia/Eu debaixo do chuveiro/Ele mora no sertão/Eu no Rio de Janeiro/Ninguém sabe ir por Andaraí/Ninguém sabe, ninguém sabe/Se o peito guarda rancor/O raio pisca o seu brilha/Do porto sai o vapor/Da vaca sai o novilho/Tem gente que faz favor/Pamonha é feita de milho/Quem roubou o meu amor/E me escondeu do meu filho/Fé de bisavó/Praga de madrinha/Laço de gravata/Bando de Rolinha/Sorte de repente/jura de madrinha/Vou cantar agora/Uma prenda minha/Eu fui lá, na grota funda/Avisar meu feiticeiro/Fiquei bom de reumatismo/E ganhei muito dinheiro/Melhorei do meu cansaço/E ganhei muito dinheiro/Ninguém sabe ir pelo Buriti/Ninguém sabe, ninguém sabe/Se o cheiro muda de cor/O nego puxa o gatilho/A lucidez sai da dor/O trem de ferro do trilho/Se o vento liga o motor/E a morte presta um auxílio/Quem roubou o meu amor/E me escondeu do meu filho/Rede de cipó/Lata de sardinha/Porta de alçapão/Ceva de tainha/Bolha de sabão/Papo de cozinha/Meu padrinho quando moço/Era muito fazendeiro/Tirou outro do sertão/Foi gastar no estrangeiro/O dinheiro da boiada/Transferiu pro estrangeiro/Ninguém sabe ir pelo Piauí/Ninguém sabe, ninguém sabe/O avião salta do chão/O padre sai do retiro/O acaso faz o ladrão/Da espingarda parte o tiro/Do verso nasce a canção/Do sertão meu estribilho/Quem roubou o meu amor/E me escondeu do meu filho/Medo de ladrão/Noite de arrepio/boca de fogão/Casco de navio/Pipa de papel/Bem-te-vi no cio/Corda de relógio/Bomba de pavio/Teve léguas e mais léguas/Muito gado, cafezais/Sesmarias, mata virgem/Onde a vista já não vai/Extensão de terra roxa/Ia até o Paraguai/Tive até um burro preto/Que vovó deu pro papai/Eu também já tive um tio/Que virou velho gaiteiro/Que gostava de mulher/Como eu gosto de dinheiro/Ere louco por mulher/Eu me amarro no dinheiro/Fui mascate no sertão/Caminhei o norte inteiro/Vendi grampo a prestação/Guarda-chuva em fevereiro/Até hoje estou esperando/A remessa do dinheiro/O mati é passo preto/De janeiro até janeiro/Ele casa no verão/Eu namoro o ano inteiro/O mati já tem bisneto/Eu ainda tô solteiro/Ele voa em liberdade/Inda tô no cativeiro/E voou pra imensidão/Eu ainda prisioneiro/Canta curió/Canta coleirinho/Sabiá da mata/Garnizé de ninho/Terra de ninguém/Viração marinha/Vou cantar agora/Uma prenda minha/Uma vez em Nova York/Liguei pro meu feiticeiro/Que atendeu o telefone/Lá no Rio de Janeiro/Eu então falei pra ele/Procurar meu macumbeiro/Pra avisar pro pai-de-santo/Pra arranjar algum dinheiro/Pra pedir pro delegado/Pra soltar meu curandeiro/Mas o tal telefonema/Lá se foi o meu dinheiro/Sunga de lagarto/Dente de galinha/Sovaco de cobra/Pena de tainha/Asa de tatu/Jura de Maria/Gritos de menino/Rabo de cotia” (1).
Amigos/a leitores/a consigam 10 minutinhos do seu corrido tempo do dia a dia, e ouça Tom, ou Miúcha, além, é claro dos seus artistas preferidos. Ouça, por exemplo, essa divertida toada, cuja letra oficial está aqui reproduzida, na íntegra. Esperamos que gostem. o nosso obrigado.
Notinha útil – Hoje, 21 de setembro é o Dia da Árvore. Em 1979, Roberto Carlos lançou O Ano Passado, dele e Erasmo Carlos, cujos versos dizem: “Quem padeceu de insônia/Com a sorte da Amazônia,/Na lei do machado,/Mais forte do ano?/Não adianta soprar/A fumaça do ar – As chaminés do progresso/Não podem parar!”. Hoje, quase 50 anos depois desse questionamento, não é apenas a Amazônia que padece pelas “chaminés do progresso”, é o Brasil, é o mundo. E o futuro!?(www.facetasculturais.com.br).
Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros
Fonte consultada: 1. CD “Miúcha”, coleção FOLHA: 50 anos de Bossa Nova, SP: vol. 10, 2008.