“O que se comenta no inferno”, segundo Verissimo

Os cronistas são mesmo geniais. A lista desses profissionais no Brasil é longa, vasta. Mas, vamos direto falar sobre um deles: Luis Fernando Verissimo (1936-2025), que desde os anos 80 já vinha sendo considerado “o campeão do humor na literatura brasileira”, o qual narrava nas suas crônicas a cara e a vida do brasileiro independente dessa ou daquela camada social. Só para exemplificar, ao iniciar o texto do livro “Comédias da vida pública”, na edição de 1995, Verissimo garante:

“A vida cotidiana num país ocupado não será muito diferente da normal. Os atos de resistência e heroísmo ficarão conhecidos mais tarde, não raro glorificados pela perspectiva do tempo. Hoje não passarão de notícias críticas nos jornais, um tiroteio ouvido à noite e nunca explicado, uma correria na rua, um comunicado do comandante tranquilizando a população e alertando contra os heróis. E a população dormirá sem remorso e acordará sem culpa para o seu café-com-leite”.

“Comédia da vida pública” é um livro de leitura imperdível a todo leitor. Essa obra reúne crônicas do autor que datam de 1968 à 1995. Porém, a criatividade – para não se falar em sensibilidade literária – de Fernando Verissimo continuou em alta – escrevendo regularmente – até janeiro de 2021, quando foi acometido por um AVC, quando ficou saúde debilitada; e, cujo agravamento teve a sua vida ceifada na semana passada, no dia 30 de agosto, aos aos 88 anos.

Há pouco mais de duas década, em 2003, o escritor publicou nos jornais de maior circulação nacional a seguinte crônica, cujo conteúdo continua atualíssimo no Brasil de ontem e de hoje: “O que se comenta no Inferno”. Por isso, resolvemos reproduzi-la aqui, na íntegra. Vamos ao texto:

“O Diabo odeia comer sozinho. Todas as noites recebe pequenos grupos para jantar no que chama de sua anti-cobertura, um duplex no último subsolo do Inferno, escolhendo entre as almas condenadas as mais interessantes e de melhor papo.

Os pratos são sempre grelhados e o vinho é de produção local. Mas o principal é que todos se divertem, falando mal de Deus e todo o mundo, apesar de algumas desavenças. A Lucrécia Borgía, por exemplo, já tinha pedido para não ser colocada perto da Eva Braun, pois não aguentava mais as queixas da namorada de Hitler, de que não merece estar no Inferno, pois seu único pecado foi amar o homem errado. Mas, ultimamente, a questão de quem merece e quem não merece estar no Inferno vem sendo muito discutida. É, aliás, o assunto dominantes nos jantares do Diabo, que confessa estar às voltas com uma verdadeira rebelião de almas que pedem revisão de sentença e perdão retroativo. É o caso dos dos que foram mandados para o Inferno por usura, no tempo em que era pecado. E – como gostar de lembrar o Diabo, com um sorriso malicioso – a Igreja ainda não inventara o Purgatório justamente para acomodar os usuários, pois sem eles não haveria empréstimo a juros, bancos e sistemas financeiros. Hoje a usura não só é o que faz o capitalismo rodar como é o que manda no mundo.

E, principalmente, não é mais pecado, pois os juros não são mais uma abominação aos olhos do Senhor. Até a Igreja tem bancos. E os condenados por usura no Inferno perguntam se não têm direito à mesma responsabilidade conquistada pelos banqueiros, que hoje enriquecem em vida sem o risco das suas almas penarem na morte, e à absolvição. Ou pelo menos a um upgrade para o purgatório.

O Diabo não costuma convidar usuários queixosos para a sua mesa mas não pode prescindir da presença de Oscar Wilde, um dos seus comensais favoritos, apesar das suas constantes críticas à comida, à companhia e à ausência de ar condicionado. E Wilde, que foi preso, execrado e excomungado por homossexualismo, ao ficar sabendo da ordenação de um bispo gay pela Igreja anglicana esta semana, também passou a reivindicar uma imediata revisão de seu caso e transferência para o céu.

“Nada contra você D”, diz Wilde, “mas aposto que o vinho lá é melhor”. Não admite o Diabo argumentar que nem ele nem Deus são senhores dos tempos, que mudam, ou da Justiça Divina, que não tem Corregedoria. Wilde só promete epigramas cada vez mais pesados, mas a gritaria dos indignados do Inferno aumenta” (1).

Preferimos não entrar no mérito da crônica acima. Cada leitor(a) há de tirar a sua própria conclusão. Sabe-se que a narrativa é bem atual e tem fortes ligações com o cotidiano do Brasil político, econômico, social, etc.

Pensamento da semana: “Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia” (Apesar de Você, de Chico Buarque, 1978).

Por Angeline e F. Gomes e Winnie Barros

Fonte consultada: Jornal A Crítica, Manaus, 06 de novembro de 2003.

Deixe um comentário