“Não há abismo em que o Brasil caiba”

Foto-símbolo da música Marielle Franco

Henrique George Mautner, ou melhor Jorge Mautner, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 17 de janeiro de 1941 (80 anos). Cantor, compositor, violinista e escritor. Sua mãe era de origem iugoslava e católica; seu pai, judeu austríaco. George nasceu um mês após sua família chegar ao Brasil – em plena Segunda Guerra Mundial -, fugindo dos horrores do nazismo liderado por Hitler.

Sue interesse pela música e literatura surgiu na infância. Aos 15 anos escreve seu primeiro livro: “deus da chuva e da morte”. Depois, vieram outras obras. Aos 21 anos, em 1962, adere ao Partido Comunista Brasileiro, mas com o advento do golpe de 1964, é preso. Porém, logo foi posto em liberdade, mas “sob a condição de se expressar mais cuidadosamente”, ou seja, não criar problema para o regime vigente. Em meados dos anos 1960, o jovem ruma para os EUA. De lá, em 1970, vai para Londres, onde se aproxima de Gil e Caetano. De volta ao Brasil, conhece o músico Nelson Jacobina, com quem formou parceria, até a morte desde, em 2012. O disco em questão é dedicado ao parceiro falecido.

Em 1974, Mautner lança Maracatu Atômico, dele e Jacobina, cujos versos são estes: “Atrás do arranha-céu tem o céu, tem o céu/E depois tem outro céu sem estrelas/Em cima do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva/Que tem gotas tão lindas que até dá vontade de comê-las”. Aliás, essa música, que é sucesso (sempre), independente qual seja seu intérprete. Inclusive Nação Zumbi/Chico Science.

Apesar de ser um músico que está sempre em evidência nos últimos 50 anos, eu, particularmente, só passei a conhecer um pouquinho melhor a obra desse genial artista, em 1983, quando Zé Ramalho lança o LP “Orquídea Negra”, no qual consta este agradecimento: “Obrigado Jorge Mautner por me dares o signo/símbolo/direção necessária para atravessar esse quinto mar de sons, sonhos o poemas, pois o sonho acabou e à Amélia Colares, a última revolução do meu coração e da minha paixão, a quem dedico este disco”.

Nesse disco, a música homônima é o carro-chefe, cujas letra e melodia – espetaculares – são de Mautner. Por sinal, uma das melhores da carreira do paraibano do Brejo do Cruz. Leiamos (ou cantemos) alguns versos: “Atenção artilheiro/Três salvas de tiros de canhão/Em honra aos mortos da ilha da ilusão/Durante a última revolução do coração e da paixão/Apontar a estibordo. Fogo!”. Na outra estrofe: “Você é a dor do dia a dia/Você é a dor da noite à noite/você é a flor da agonia…”. Por fim: “Parece até a própria tragédia grega/Da mais profunda melancolia/Parece a bandeira negra/Da loucura e da pirataria”. Estes versos têm endereço certo: Amelinha.

A partir de “Orquídea Negra” passei a ouvir mais, analisar mais as composições de Mautner. Por assim dizer, o CD “Eu Não Peço Desculpa”, de 2002, dele com Caetano. Trata-se de um trabalho imperdível. Nele, as 14 composições são de sua autoria. Por exemplo, Todo Errado (“Eu não peço desculpa/E nem peço perdão/Não, não é minha culpa/Essa minha obsessão/Já não aguento mais/Ver o meu coração/Como um vermelho balão/Rolando e sangrando/Chutado pelo chão”).

Em 2019, depois de quase uma década sem lançar um disco inédito, surge “Não há abismo em que o Brasil caiba”, com 14 músicas, todas de sua autoria. Ruth Rainha Cigana, a primeira delas, é uma homenagem à esposa Ruth Mendes, com quem está casado há mais de 50 anos. Nela estão estes versos: “O fim do fim da doçura do amor supera tudo que seja lá o que for/Até mesmo o terror da dor que emana, da fúria de um açoite”.

Outras cações são: Ouro e Prata na Mão (“Com ouro e prata na mão/E ódio no coração/Assim ele caminhou/Ao lado da processão”); Segredo (“Vou lhe contar um segredo/Para acabar com o medo“); Bang bang (“A bala perdida/Lá do bang bang/Abre uma ferida/De onde escorre o sangue”); Destino (“Somos para sempre/Pela dor agoniados sorrindo/Pelo amor atormentado”); O Passado (“O passado é o passado/Mas ele nos fortalece“); Marielle Franco (“Uma força furiosa me impele a gritar/Com os nervos à flor da pele”), entre outras.

Sobre o título do CD, “Não há abismo em que o Brasil caiba”, há uma justificativa na capa, assim: “A frase (…) é do filósofo português Agostinho da Silva que viveu no Brasil durante o regime salazarista”. Esse pensador, George Agostinho Baptista (com “p”) da Silva (1906-1994), foi um dos maiores estudiosos luso-brasileiros. Viveu no Brasil por mais de 20 anos (de 1947 a 1969). Inclusive foi de fundamental importância na criação das Universidades de Santa Catarina e da Paraíba.

Perseguido pelo ditador português Antônio Salazar, o escritor auto exilou-se na América do Sul a partir do fim da década de 1940. primeiramente instalou-se no Brasil. Depois, no Uruguai e na Argentina. Por fim, entre 1947 a 1969, permaneceu no Brasil. Na década de 1970, partiu para Lisboa, onde faleceu em 1994, aos 88 anos, nos deixando vasta bibliografia nos ramos da Politica, da Sociologia, da Filosofia, da História, etc. Seus estudos em prol da educação é algo grandiosos, cujos benefícios vêm superando o tempo, geração após geração.

Sua visão sobre o Brasil, era a de um país de politica decadente, que não cabia no maior que fosse o abismo. Se fisicamente estivesse entre nós, possivelmente indagaria: “O Brasil sumiu no Triângulo das Bermudas?” Voltando, porém, para Mautner, que oportunamente suscitou esse tema, é um artista que esta antenado aos fatos brasileiros – em todos os aspectos – que ocorrem no dia a dia do carcomido B – r – a – s – i – l, devemos, impreterivelmente, refletir sobre este poema, intitulado Marielle Franco:

“Uma força furiosa me impele a gritar/Com os nervos à flor da pele/É preciso exterminar/A doença mental, física e assassina/Do racismo, do anti-feminismo/E do neonazismo.

É preciso arrancar/Da medula dos ossos/Dos nervos até a epiderme da pele/Este medonho cancro/Que matou Anderson Gomes/E que matou Marielle Franco”.

Sua duração é de 1min47seg. Mas sua mensagem é imensa, é incisiva. Dolorida. Manchada de sangue. Todos choramos há mais três anos. Aliás, só não sofrem os executores e mandantes que ceifaram as vidas de Anderson e Marielle. Parabéns, Mautner pela coragem em compor e cantar estes versos tão impactantes, ou seja, A CANÇÃO DA ESPERANÇA POR JUSTIÇA. Que esse poema seja o hino para os familiares de tantas outras vítimas Brasil afora, onde os crimes grassam diariamente. E pior, sem resolução para a maioria das ocorrências.

Por Angeline e Francisco Gomes

Fonte: 1. CD de Jorge Mautner: “Não há abismo em que o Brasil caiba”, Deckdisc. Manaus – AM, 2019.

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