Nelson Gonçalves: o mito

Em 1995, a gravadora RCA lança uma caixa com 3 CDs: “Nelson Gonçalves: o mito”. São 71 músicas (1941 a 1990). Gravações originais. O perfil biográfico do artista é escrito por Stella Miranda; pesquisa iconográfica e edição de imagens, por Cláudia Bandeira. O encarte, em formato de livreto, de 26 páginas contém excelentes texto e fotos. Tudo é primoroso.

A autora inicia a sua pesquisa dizendo: “Nelson é um fenômeno”. E segue assim: “Praticamente o último remanescente da velha escola de cantores tipo dó-de-peito, deveria, portanto, ser tombado como monumento espiritual da cultura nacional. O Reio do Rádio é um patrimoniou recheado de equívocos históricos imperdíveis. Ganhador do Prémio Nipper (Nipper é aquele cãozinho famoso, que fica ao lado do gramofone no selo da RCA) da indústria fonográfica internacional – honraia antes só concedia a Elvis Presley – pelo tempo de permanência recorde na mesma gravadora (á época, 33 anos; hoje perfazendo um total de 55 anos)”.

“Nelson impressiona pelos números. Ao longo de cinco décadas, gravou mais de 2.000 canções registradas em 183 discos de 78 rpm, um número incalculável de compactos (em torno de 100) mais 200 fitas e 127 LPs gravados, segundo os cálculos do próprio cantor, Com 53 milhões de cópias vendidas, recebeu 15 discos de platina e 41 de ouro. “Sou uma espécie de dinossauro”, pontifica com ironia majestática o Rei, debaixo de seus 76 anos de idade”.

durante meio século, a trindade do rádio – Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Francisco Alves – foi soberana. Nelson chega à nova era da música, à contemporaneidade, quando, “aos 70 anos, grava um disco antológico ao lado do roqueiro Lobão, de Milton Nascimento e Chico Buarque”. Era, sem dúvida, um salto grandioso, na vida e na carreira do “malandro que passou fome nas pedras do aterro do Flamengo…). Criou dez filhos, entre adotados e legítimos. O Frank Sinatra brasileiro sempre foi um paradoxo, machista convicto (…), é hoje reserva moral da MPB” (1).

Nos anos 40, 50, o tema brasilidade, da identidade nacional estava fora da ordem do dia. Os mitos que habitavam a nossa memória coletiva, como herança cultural, eram as narrativas dos tempos fabulosos, dos folhetins. “O Brasil vivia procurando a si mesmo. Achou. Achou Carmem Miranda, Orlando Silva e agora Nelson Gonçalves”, para orgulho da música nacional.

A seleção em análise é uma verdadeira “recuperação histórica do mito”, ou seja, desse magnífico Rei do Rádio. Trata-se de “uma coleção de perturbadores personagens anônimos, assustadoramente reais, habitam a boemia e desfilam pelos tangos, foxes e boleros do cantor: a Odalisca, a Normalista, a Lili Analfabeta, s Sapoti, etc”. Isso transcende o histórico particular de Nelson. E, Stella arremata: “Essas 71 faixas garimpadas ilustram, nós não diríamos o universal, mas o arquétipo nacional de um brasileiro. A MPB ainda não havia prestado a devida homenagem à sua mais perfeita tradução que, quando canta, resga a garganta e se transforma em rouxinol: Nelson Gonçalves, o Super-Homem Brasileiro” (1).

Antônio Gonçalves Sobral, seu nome de batismo, nasceu no dia 21 de junho de 1919, em Santana do Livramento, fronteira do Estado do Rio Grande do Sul com o Uruguai, e morreu aos 79 anos, em 18 de abril de 1998, na cidade do Rio de Janeiro. Aos 7 anos, em 1926, já estava morando no Brás. Bairro proletário paulistano “de gente humilde (…) onde brasileiros brancos, negros e mestiços” e muitos imigrantes europeus como italianos, por exemplo, que viviam em cortiços. Porém, antes de se fixarem na Paulicéia, os pais do menino, Manuel e Libânia, migraram de Portugal e, desembarcaram, primeiramente em na capital carioca.

“Era uma vez um garotinho, Tonico. Caçula de dois irmãos, tinha 6 aninhos e um timbre aveludado. Cantava nas feiras-livres, sobre um caixote de bacalhau, enquanto o pai, seu Manuel, artista mambembe e violonista esperto, se fingia de ceguinho para arranjar alguns trocados”. Segundo ele, a sua família precisava “fazer deste Brasil um imenso Portugal!”

Aos 12 anos o garoto havia aprendido a encarar a vida de um modo muito peculiar, isto é, devido sua gagueira, “falava depressa demais, cuspindo as palavras; tanto que acabou sendo expulso do Liceu Eduardo Prado, no 4º ano primário (…) quando atira o tinteiro nas costas da professora. Tonico foi ser jornaleiro na vida, engraxate, mecânico, polidor e tamanqueiro”. Somente 30 anos concluiu o ginásio e aos 45 anos de idade, completou o científico.

Aos 17 anos vai ser boxeur na vida e muda-se para Taubaté (SP). Durante 4 anos venceu 24 adversários, tornando-se campeão paulista dos Meio-médios. Prêmio irrelevante: 20 contos de réis. Foi então, estudar música com o maestro Armando Bellardi. Passados 6 anos o mestre questiona o aluno: “Cantar ou boxear?” Cantar, respondeu o jovem aprendiz.

“Foi ser cantor de gogó, é claro. Aprende tudo: respiração, divisão das palavras, valorização das tônicas. Não cansava as cordas vocais, respirava pelo diafragma, dava até dó-de-peito e o seu já famoso gravíssimo”. O mesmo maestro explicou à mãe do jovem “que ele não era gago; era taquilárico, do grego takimós: respiração curta, acelerada. E o mestre deu então o brado retumbante: Vox populi andate a cantare, vai cantar pro povo, meu filho!” (1).

E esse nome, Antônio? Não era nada sonoro. Logo a rapaziada do Brás escolheu outro: Nelson”. Bem musical. “Rapazote era, então, ansiedade típica da juventude pobre do bairro”. Até que chegou à Rádio São Paulo para um teste com maestro Gabriel Migliori. O estreante pede para cantar Chora Cavaquinho (do mestre Dunga) e sucesso de Orlando Silva. O garoto foi aprovado para o Programa Teatro Alegre, do humorista Tom Bill, mas Nelson emudecido de nervosismo, foi um fracasso. “Entrou mudo e saiu calado”. Bill ironiza: “Com vocês ouvintes, o cantor-mudinho”. Porém, na semana seguinte, Tonico, deu a volta por cima; soltou o ré gravíssimo e cantou como um rouxinol…” Daí em diante…

Nobres leitores, em breve a 2ª parte desde fascinante relato. Com mais novidades, é claro.

Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros

FONTE: 1. Encarte “Nelson Gonçalves: o Rei do Rádio”, por Stella Miranda, SP: – Grav. RCA, 1995.

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