Ano após ano, os professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, trabalham com os seus alunos, principalmente com os finalistas do ensino médio, os quais estão às portas dos concursos públicos, vestibulares e Enem, os mais destacados nomes de prosa e verso nacionais. Entre eles estão Bandeira, Gullar, Drummond, Azevedo, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Lígia Fagundes Telles, Lya Luft, entre outros.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, que adotou a cidade do Rio de Janeiro como a sua segunda terra natal. Há, inclusive, declaração do próprio poeta sobre a Cidade Maravilhosa. Como foi um poeta-cronista e vice versa, genial e, antenado a tudo e a todos, parte de sua criação artística, tinha como cenário urbano do cotidiano, fatos que representam o carioca. Assim, aqui e ali o autor não só desenhava a cara do brasileiro, ou seja, a conduta da nossa gente, do nosso povo; da nossa índole, do nosso caráter. Caráter esse, às vezes, leviano e duvidoso por parte de muita gente.
Leia, portanto, a seguir, O RECALCITRANTE, de Drummond, escrito lá pelos idos dos anos 70:
“O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina.
– Ei, moço quer fazer o favor de levantar?
– O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade), nem-te-ligo.
O trocador esfregou as mãos no rosto , em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:
-Estes “caras” são de morte.
Devia está pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam problemas. Bem disse o Dario, Quando fazia gol no Atlético Mineiro: Problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em coletivos. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por 65 centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-da-peste. Mas insistiu:
–Moço! Ô moço!
Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência:
– O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção?
O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre.
Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa “fria”. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair do seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:
-Vamos levantar?
– O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:
– Como é, não levanta?
–Estou bem aqui.
– Eu sei, mas é preciso levantar.
-Levantar pra quê?
– Pra que, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.
– Tem certeza que é água do mar?
– Tá na cara.
– Como tá na cara? Analisou?
Forrou-se de paciência para responder:
– Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se…
– Se o quê?
– Nada.
– Vamos, diz o que pensou.
– Não pensei nada. Digo que o senhor tem de levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
– E daí ?
– Daí, que é proibido.
– Proibido suar?
– Claro que não.
– Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?
– Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.
– Que portaria?
– Aquela pregada ali, não está vendo? “O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé.
– Portaria nenhuma diz que o passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom?
– O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.
– Eu, descer porque estou suado? “Sem essa”.
– O ônibus vai para e eu chamo a polícia.
– A polícia vai me prender porque estou suando?
– Vou botar o senhor pra fora porque é um… recalcitrante.
O passageiro pulou, transfigurado:
– O quê? Repita se for capaz.
– Re… calcitrante.
– Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!
– Eu? Não insultei.
– Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o que, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.
– Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante…
– Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão, ou…
Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que consequências físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”” (1).
Vamos de Oscar Wilde: “A vida imita a arte mais do que a arte imita a vida“. O brasileiro gosta de contrariar o óbvio. Em muitos aspectos é recalcitrante sim, principalmente em situação comportamental, quando o subterfúgio é um elemento utilizado para “justificar” erros de conduta e até mesmo pequenos delitos do cotidiano. Há um Macunaíma em cada lugar do Brasil, escondidinho ou não (sem generalizar, é claro).
Fonte 1. Tersariol, Alpheu. Manual prático de redação e gramática, SP: – Li-Bra, s/d (anos 70?), páginas 454/455.
Muito bom. Eu li este texto quando estudei no Ginasio Santo Agostinho, no inicio dos anos 80. Não me recordava quem era o autor.
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