Para quem não acessou o Facetas na semana passada, publicamos a primeira parte sobre o show mágico de Jessé “O sorriso ao pé da escada”, gravado ao vivo no Rio de Janeiro, em 1983. Continuando, eis aqui a segunda e última parte dessa narrativa fantástica de Elifas Andreato.

O CAMARIM. Agora o palco tem uma moldura de luzes coloridas. Dentro dele tem um camarim. No espelho, algumas fotos antigas. Ele está só… em silêncio. O olhar percorre o palco escuro, … e descobre ali, … quem sabe num vestido ou numa boneca, a lembrança de Dolores Duran: – “Hoje eu quero a rosa mais bela que houver”…
Ele está só. Não tem ninguém, só os instrumentos deixados ali na penumbra, sem som, quietos. Bonecas de pano, manequins, fotos antigas,… e ali no espelho seu rosto se confunde com as fotos… e ele se lembra de Maysa: – “Meu mundo caiu”…
Ele sabe que precisa cantar. Para a solidão não doer como doía em Dalva de Oliveira: – “Bandeira branca amor, não posso mais, pela saudade que me invade eu peço paz”… Quatro mulheres. Quatro estrelas solitárias que encontraram o caminho que vai dar no Sol. E por ele chegaram ao céu.

Então ele ouve uma voz lembrando um pensamento de Elis:
– “Eu sei do meu papel de bobo da corte, mas vou cantar até me tomarem os guizos (…) Sei que no final vai me sobra apenas o palco para cantar, e eu vou cantar como cantava Edith Piaf”.
E ele canta “Romaria” como cantava Elis Regina.
As palavras de Elis ecoam no palco. Uma luz suave, azul, ilumina um retrato dela e um chapéu de Carlitos; ele se vira devagar, fica de costas para a plateia, no fundo do palco; no céu uma porção de estrelas se acendem e ele pergunta:
-“Onde está você, se o sol morrendo se escondeu? onde está você, se a tua voz a chuva apagou? …
Ele está ali parado, ainda de costas, agora ouvindo a própria Elis cantar o trecho final de “O Bêbado e a Equilibrista”.
-“Sei que uma dor assim pungente,/Não há de ser inutilmente/A esperança/dança na corda bamba de sombrinha/e em cada passo dessa linha/pode se machucar./Azar, a esperança equilibrista/sabe que o show de todo artista/tem que continuar”…
Agora diante do espelho ele tem a impressão de estar ouvindo “Luzes da Ribalta”, com uma grande orquestra… a música aumenta, se espalha pela plateia.
Ele se vê no espelho iluminado… a música agora toma conta do teatro, ele vai até o piano, começa a tocar. Então, ele vê um Carlitos que entra, recolhe sua própria imagem… outras fotos, objetos, roupas, lembranças. Apaga as luzes e com sua bengala girando no ar desaparece através da lua, no azul. (A música continua, agora apenas com a orquestra, enquanto os contra-regras terminam a arrumação/do cenário).
O ARTISTA. “O palco agora está pronto. tudo limpo, bem arrumado. Vai finalmente começa o espetáculo. Chegou o grande momento. Ele vai finalmente estrear. O artista está pronto! E ele canta. Porto Solidão, Solidão de Amigos, Paraíso das Hienas e Voa Liberdade.
Agora todas aquelas luzes não o incomodam mais. Todas aqueles anos cantando em bailes,… todos aqueles lugares, estão ali com ele, agora mais vivos e mais fortes. Ele sabe que jamais poderá separar-se deles.
Eles são a sua história, … sua coragem.
Ele sabe que agora a sua voz vai mais longe, por isso ele não quer cantar apenas o amor. Ele sabe que um artista canta a liberdade…
Um artista sabe o que é solidão; ele canta a solidão de todos nós.
Um grande artista no entanto, não canta apenas o amor, as injustiças, a liberdade ou a solidão. Ele sabe que hoje mais do que nunca, um grande espetáculo tem que tem a esperança de melhores dias, a esperança de que se cantarmos juntos, todos nós, a mesma canção, o mundo poderá, quem sabe, ser mais simples, por isso mesmo melhor, e mais bonito!
-“Somos todos irmãos da lua/Moramos na rua/Bebemos no mesmo copo/O caminho já não é novo/Por ele é que passa o povo/Farinha do mesmo saco/Galinha do mesmo ovo/mas nada é melhor que a água/A Terra é a mãe de todos/O ar é que toca o homem/E o homem maneja o fogo/E o homem possui a fala/E a fala edifica o canto”…
-“Quero a utopia, quero tudo e mais/ quero a felicidade dos olhos de um pai/quero a alegria, muita gente feliz/quero que a justiça reine em meu país/Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/quero ser amizade, quero amor, prazer/quero nossa cidade sempre ensolarada/os meninos e o povo no poder, eu quero ver”..
Termina o espetáculo! Os aplausos e os gritos de bis o acompanham até o camarim.

No espelho, algumas fotos suas, bilhetes e cartões que lhe desejaram sucesso. Na mesa, algumas flores… ele sabe que agora o caminho é só de ida. Não tem volta… e que enquanto houver sucesso será mais fácil suportar a solidão do camarim. Tem muita gente lá fora, querendo vê-lo. Falar com ele… Basta ele abrir a porta ” (1).
Por fim, silencia Elifas e fala Jessé, quando diz: “Não existe a menor diferença entre o cantor de 5, 10, 15 anos atrás e o artista de hoje”, isto é, a vida é gostosa apesar dos tempos idos. Cada show revela vida nova. E, continua o notável artista: “É o passado e o presente juntos contando a história que é também do Elifas e desses músicos, que deixam de lado outros trabalhos, para cantar comigo, mais uma vez”. E, completando, canta: “Eu canto a música que encanta/E nos alimenta. Por isso canto!/Porque uma pessoa pode cantar/Como pode, amar, falar e respirar./A minha voz é mais uma voz no ar/Afinada, no mar da canção popular” (1).
Fica registrado aqui, portanto, em dois artigos, a grandiosidade que foi esse show. Assim como a excelente qualidade musical dos dois discos em questão; a poesia de Elifas; e a eterna voz de Jessé. É prazeroso demais ouvi-lo. Esperamos que os nossos leitores concordem conosco. A musica afasta para bem longe, a nossa solidão, ou seja, a solidão do nosso interior. “O homem possui a fala e a fala edifica o canto”. Cantemos, então! Vamos abrir a porta dos nossos corações… Até breve!
Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.
Fonte consultada: 1. LP duplo “O sorriso ao pé da escada” de Jessé. RJ: Gravadora Columbia, 1983.
Meu LP preferido.
Obra de arte que não foi reconhecida.
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