“Eu não quero mais revanche”

Você sabe quem é João Luiz Woerdenbag Filho? É o verdadeiro nome do cantor, compositor, multi-instrumentista e escritor carioca, artisticamente conhecido por Lobão (67 anos), uma referência do rock nacional. São de sua autoria alguns hits como Me Chama, Vida Louca Vida, Esta Noite, Não, Corações Psicodélicos, Canos Silenciosos, entre outros.

“No fim de 2010, Lobão escrevia sua explosiva autobiografia, o best-seller Lobão: 50 anos a mil. Agora, dez anos depois, ele brinda seus leitores com a segunda parte (e igualmente explosiva) de sua história, incluindo as novas criações artísticas e as turbulências pelas quais o Brasil passou nos últimos 10 anos (“orelha” de Lobão: 60 anos a mil)”.

São dois livros imperdíveis à nossa leitura. O primeiro, apesar de suas 591 páginas, em momento algum, deixa o leitor enfadonho. O segundo, tem apenas 270 páginas, mas é mais interessante ainda. Em ambos, as palavras do autor, refletem a verdade dos fatos – sejam elas favoráveis ou não à pessoa do escritor. Lobão, assim como a Rita Lee, em sua autobiografia, não faz uso de meio-termo. É direto. Sem subterfúgios. Tem mais: em 2014, o mesmo publica “A marcha dos infames”, retratando o país da era atual do PT, até então, é claro.

No prólogo de 60 anos a mil, ele diz: “O Brasil vive de silêncios formidáveis em sua memória, e o passado recente é de uma antiguidade matusalêmica. O que aconteceu na semana passada já vaga em degredo no rio do esquecimento e basta um feriado para se enforcar uma denúncia, para definir uma nova afasia, para fundar uma nova pré-história e, assim sendo, enterrar mais um escândalo junto com o pterodátilos. Brasileiros, somos condenados a repetir com orgulho e convicção nossos mais grotescos erros, indefinidamente”.

Porém, vamos falar (também) do Lobão compositor. Diga-se de passagem, excelente profissional. O que fez dele um notável artista conhecido nacionalmente. Principalmente no “mundo” do rock, desde o início dos anos 80. Por exemplo, em 1986, o Brasil acabava de sair do regime militar (1964-1985), e tentava se redemocratizar em todos os aspectos. Foi nesse contexto histórico e social que o jovem músico lançou o disco (LP) “O rock errou”, com 10 canções. Entre elas Revanche (Lobão e Bernardo Vilhena). A seguir, a íntegra original dessa fantástica composição. E, sempre atual.

“Eu sei que já faz muito tempo/Que a gente volta aos princípios/Tentando acertar o passo/Usando mil artifícios/Mas sempre alguém tenta um salto/E a gente paga por isso/Fugimos pras grandes cidades/Bichos do mato em busca do mito/De uma nova sociedade/Escravos de um novo rito/Mas se tudo deu errado/Quem é que vai pagar por isso?/Eu não quero mais nenhuma chance/Eu não quero mais revanche/A favela é a grande senzala/Correntes da velha tribo/E a sala é a nova cela/ Prisioneiros nas grades do vídeo/E se o sol ainda nasce quadrado/E a gente ainda paga por isso/Eu não quero nenhuma chance/Eu não quero mais revanche/ Um café, um cigarro, um trago/Tudo isso não é vício/São companheiros da solidão/Mas isso foi só no início/Hoje em dia somos todos escravos/Quem é que vai pagar por isso?/Eu não quero mais nenhuma chance/Eu não quero mais revanche” (1).

Passados quase 40 anos do seu lançamento esse poema está aí bem atual; seus contundentes versos estão vivíssimos no dia a dia dos brasileiros. Devemos isso à criativa sagacidade artística dos dois jovens criadores, à época. Nos idos dos anos 80, a nação brasileira não queria (e nem quer hoje) revanche, ou seja, vingar-se pelas agruras sofridas ao longo das duas décadas anteriores; nem das posteriores até a atualidade. Mas, a pergunta não quer calar: “Quem é que vai pagar por isso?”

Brilhantemente assegura o escritor Lobão. E, sem dúvida, cabe aqui uma reflexão por toda sociedade brasileira: “É muito curioso você estipular um roteiro, itens a serem relatados, intenções emocionais a serem ressaltadas, brasas puxadas para a nossa sardinha e verificar com espanto tudo isso se transformando, sendo moldado por impulso muito mais possante que qualquer planejamento ou intenção prévia: o clamor interno por verdade, por reconciliação com o passado, por perdão, por amor, e não por revanche, por rancor, por trama ou por escárnio. Um pacto inconsciente pelo mito” (2).

Quem é que vai pagar pela capenga personalidade do Brasil: país tupiniquim das novas senzalas, do trabalho escravo que persiste, da morte por omissão do Estado no meio do povo ianomâmi recentemente, dos incêndios criminosos em diferentes regiões, pela insegurança da Segurança Publica urbana e rural, pela falência do ensino público, pela insaciável ganância do sistema econômico, pela polaridade ideológica e política partidária instalada entre irmãos com viés de ódio, pela fome que grassa, mas a culpa é dos fenômenos climáticos, etc, etc, etc?

Senhores leitores, de uma coisa tenhamos certeza: a chance de mudança coletiva existe. Mas, ela só virá se houver um pacto de união da maciça maioria da nossa população em prol do bem comum, pelo respeito da opinião alheia; pelo debate; pelo exercício da cidadania, da democracia, etc. Sem radicalismo; sem revanchismo. Consciência já!

Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.

Fontes consultadas: 1. LP “O rock errou“, de Lobão, SP: RCA; 2. Lobão: 60 anos a mil, SP: LeYa, 2020.

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