“Um país chamada infância”

“Você me diz que seus pais não lhe entendem/Mas você não entende seus pais” (Pais e Filhos, Legião Urbana, 1989).

Se vivo estivesse, amanhã ele estaria completando 88 anos de idade. Estamos lembrando do escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011), que nasceu e faleceu em Porto Alegre (RS) em 23 de março de 1937 e 27 de fevereiro de 2011, respectivamente. Médico especialista em saúde publica e professor universitário, também soube bem lidar com a literatura. Um dos maiores nomes brasileiros, por sinal. Por exemplo, em 1989, lança pela primeira vez a obra “Um país chamado infância”, resultado de “deliciosas crônicas que descreve o movimentado dia a dia da relação entre pais e filhos e descortina o maravilhoso mundo infantil”.

As frases ditas a uma criança são exatamente o contrário – ou seja, o seu sentido não tem sequência lógica – do que ela ouvirá 30 anos depois, já adulta. Basta comparar as falas do item “A. Na infância”, com as do item “B. Trinta anos depois”, segundo Scliar, “para que a gente se convença de quanto é absurda a loteria da realidade da vida. Para a infância não há nada mais diferente que o “antes” e o “depois” do passar dos anos dos filhos” – sempre criança, para os pais. Vamos, então, às incríveis observações do citado escritor:

A. NA INFÂNCIA

A. “Como, guri. Se você não comer, vai acabar doente. Anda, come o bife, está tão bom. Olha, se você comer, nem que seja a metade, eu te compro o Ferrorama”.

B. TRINTA ANOS DEPOIS

B. “Mas você já está comendo de novo? Recém jantou e já está na geladeira? Mas que vergonha, homem. Olha a tua barriga. Coisa mais indecente. Quando é que você vai dar um jeito nisso? Sei, sei, amanhã você começa a dieta. Já ouvi essa história mil vezes”.

A. “Vai no colégio, sim. Que história é essa de ficar em casa? E não vem me dizer que você está com febre, porque é mentira. Tem de ir ao colégio para estudar e ser alguém na vida”.

B. “Faculdade? Depois de velho você quer voltar para a faculdade? Desista, meu caro, sua cabeça não dá mais, você tem de ficar no seu emprego, que além de tudo é tranquilo. E depois, para que quer um diploma? Para ser mais um profissional liberal desempregado? Nada disso. Não vai para a faculdade, não. Fica em casa que é melhor”.

A. “Olha aí, todos os teus brinquedos espalhados pelo chão. É por isso que você perde tudo e quebra tudo. Olha: se você não juntar esses brinquedos em um minuto vai tudo para o lixo, ouviu? Para o lixo ou para o filho do zelador. Você não sabe valorizar as coisas que tem. Está na hora de aprender. Essas coisas custam dinheiro e dinheiro não se acha na rua”.

B. “Essa sua obsessão pela ordem, pela limpeza é apenas uma defesa contra a ansiedade. No fundo você é uma criança desamparada querendo harmonizar as partes em conflito de sua mente. Mas por hoje vamos ficar por aqui. A propósito a partir da semana que vem vamos ter um aumento. É esse processo inflacionário que estamos vivendo. As coisas estão custando um dinheirão”.

A. “Agora chega. Desliga esta TV e vai dormir, anda. Amanhã você precisa levantar cedo para ir ao colégio. Não, não tem nada de mais cinco minutinhos. Você ferveu o dia inteiro, agora tem de descansar”.

B. “Dormir? Você já vai dormir? Mas você não tinha dito que ia ao cinema hoje. Está bem, eu sei que você teve um dia cheio no escritório, que está cansado e com dor de cabeça. Mas também precisa se divertir um pouco. Faz um mês que não sai de casa. Foi para isso que casou? Quando estava noivo você não queria saber de dormir, sempre dizia que a noite era uma criança e que ainda dava para fazer mais programas. Vai lá, homem, te veste e dar uma saída.”

A. “Nada disto. Você não vai andar de bicicleta. Agora está na hora de jantar. Além disto andar de bicicleta é perigoso. Você passa na entrada de garagens. Vem um carro dirigido por um desses malucos que andam soltos por aí, te atropela e era uma vez um menino”.

B. “Você precisa fazer exercício, meu amigo. Você leva uma vida muito sedentária, todo o dia sentado numa cadeira, no escritório. Isto é perigoso. Afinal, você entrou na faixa etária de enfarte. E exercício é bom para descarregar a tensão. Por que você não anda de bicicleta, por exemplo? Olha, até que é divertido”.

A. “Olha só as suas roupas. Você suja tudo, rasga tudo. Esses tênis não tem um mês ainda , e já dá para jogar fora. Assim não há dinheiro que chegue. Por que é que você não anda limpinho e arrumado como o filho do nosso vizinho aqui de cima? Aquele, sim, é um menino que dá gosto de olhar”.

B. “Sim, eu sei que você precisa se apresentar bem, que o visual é tudo, especialmente em sua profissão. Mas eu acho que você anda elegante demais. E isto para mim só pode ter uma explicação: você anda tendo casos por aí. Elegância demais é coisa suspeita”.

A. “Você passa o dia inteiro na frente desta TV. Por que é que você não pega um livro e vai ler um pouco? Eu sei que ler é mais difícil que olhar TV, mas em compensação não há coisa melhor para desenvolver a imaginação. Eu, quando tinha a sua idade, já tinha lido todo o Monteiro Lobato, as histórias infantis do Érico Veríssimo, tudo. E isto me ajudo muito. Imaginação é uma coisa preciosa.”.

B. “E você ache que o plano econômico vai dar certo? Você tem muita imaginação, meu nobre. Aliás, é seu problema: excesso de imaginação. Um administrador, um técnico, não pode ter tanta imaginação. Você está fora da realidade, você não sabe o que as pessoas querem, o que elas estão pensando. Olha, vou te dar uma ideia: fique assistindo TV uns dias.  Não há espelho mais fiel da realidade brasileira do que a TV. Tudo que aprendi devo à TV. Se subi na vida foi graças à TV” (1).

Amigos leitores, hão de concordar conosco: Scliar é certeiro nessa relação de pais e filhos, e vice versa. Aproveitamos a passagem do Dia Internacional do Contador de Histórias (20 de março), para abordarmos este assunto. Por exemplo, a foto acima, da capa da obra do poeta amazonense Thiago de Mello, é bem sugestiva. Adultos e crianças empinam papagaio. Porém, as mães não dão trégua: “Quando criança, sim. Agora está grandinho demais para passar o dia inteiro com essas linhas nas mãos!”. Vão senhores, contem causos para os filhos, sobrinhos, alunos. É uma tradição muito legal.

Notinha útil – Hoje é o Dia Mundial da Água (criado por uma Resolução da ONU em 1993). Há mais de 30 anos, portanto, fala-se nesta data. Os cientistas estão alertando para os perigos da falta de água potável mundo afora. Mas, os governantes… Em 1978, o poeta/compositor Djavan lançava Água, cujos versos são estes: “Água pra encher, água pra manchar/Água pra vazar a vida/Água pra reter, água pra rosar/Água na minha comida”. Água, em tudo, enfim. Fica o alerta.

Notinha da saudade – Elis, Elis. Oitenta anos já se foram desde daquele 17 de março de 1945. A tua arte permanecerá entre os teus fãs e admiradores. Saudades!

Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.

Fonte consultada; 1. Scliar, Moacyr. Um país chamado infância. SP: Ática, 1995, páginas 71/74.

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