Ela ficou bastante conhecida nos meios artísticos como o “samba em pessoa”, por ter sido a primeira grande cantora desse gênero no Brasil. Aliás, foi a melhor intérprete da obra de Noel Rosa (1910-1937), sem deixar de lado as músicas de Ataulfo Alves e Ary Barros, na era de ouro do rádio da música brasileira, há quase 100 anos.
Estamos falando de Aracy Teles de Almeida (1914-1988), ou seja, da cantora carioca Aracy de Almeida, nascida e crescida no Encantado, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Apesar da da consagrada carreira musical, no samba principalmente, Aracy ficou conhecida, também, nacionalmente nas décadas de 70/80 como a jurada mal-humorada de programa de auditório, por exemplo, ao de Pedro de Lara.
Aracy já nos deixou, mas o seu legado artístico permanece no nosso meio – seja nas antiga e nova gerações. Justificamos assim essa constatação. Em 1997, outra carioca, a cantora, compositora e pianista Olivia Byington (66 anos), conclui o CD “A dama do Encantado – tributo a Aracy de Almeida”. Esclarecemos, porém, que esse CD da gravadora Biscoito Fino, é de 2004. Na contracapa do mesmo Olivia faz esse autêntico registro: “Já não sei dizer de onde surgiu a ideia desde disco. Vários acontecimentos e informações emergindo num determinado momento da minha vida me levaram à Aracy. Sempre gostei de samba. Minha mãe me ninava com um violão no colo, cantava Com Que Roupa? e O Orvalho Vem Caindo.

Eu era muito feliz de ter aquela fonte musical em casa. Mamãe ouvia de tudo: bossa nova, Bach, Rosa de Ouro, Zé Kéti e Beethoven. Aos seis anos, eu me sentava ao piano e compunha “peças trágicas” para a diversão da família, mas também já gostava de samba e tinha o apelido de Sinhá Marreca.
Na minha carreira, cantei vários estilos e interpretei autores os mais díspares no mesmo disco. Usei minha voz como instrumento lírico e popular, mas nunca tive tanto prazer em cantar como agora, neste disco. Bem dizia meu pai que meu registro mais bonito era o grave.
Quando conheci o Maurício Carrilho, percebia nele uma certa implicância comigo. Maurício é polêmico, tem sempre alguma coisa a dizer e uma opinião forte e precisa sobre as coisas, principalmente quando o assunto é samba. Trabalhamos juntos por 4 anos, viajamos e ficamos muito amigos. Um dia, num camarim, eu disse a ele que estava com vontade de fazer um novo disco que era uma compilação de clássicos brasileiros do século passado (século XX). Ele, sem papas na língua, me disse: “Que horror, hein? Esse é o disco que todo mundo espera que você faça?” E eu fiquei com ódio dele. Porém, aquilo foi a semente para a busca do que eu tinha realmente a dizer. A essa altura, eu queria só surpreender a mim mesma. Foi quando me apaixonei por Aracy de Almeida, essa cantora de tanta sensibilidade, que me fez viajar com ela por sua época, seus costumes, seus amigos de boemia. Com a ajuda do meu grande amigo Geraldo Carneiro, também fã de Aracy, comecei a imaginar um disco. Ouvi suas quase 400 gravações, passei por suas histórias folclóricas e me encantei com sua delicadeza de alma, tão distinta da imagem que ficou dela para o grande público.
O Maurício agora não implica mais comigo. Seus arranjos vão dar orgulho ao mestre Radamés. O Leandro Braga arrasou, como sempre, inventando melodias nas suas incursões pelo universo carioca. Sempre com a boa mão do Nilo Sérgio pilotando a mesa do Edgar, que muito me ajudou na pesquisa e na vida, vocês vão ouvir, Quando Esse Nego Chega. E tem Arismar, Luciana, Zero, Paulo Sérgio, Pedrinho, Deda e Jaquinho, amigos queridos, uma turma de primeira. Gravamos um clima de festa e amizade, de confraternização com a boa música, de devoção. Bem ali, na Lapa, onde não pode deixar de ser. Peço a bênção, então, a minha amiga póstuma, Aracy, e torço para que essas músicas voltem ao rádio e ao Brasil, iluminando essas memórias tão gloriosas da nossa música” (1).
No mesmo CD, no mesmo encarte, o saudoso Millôr Fernandes (1923-2012), faz o seguinte registro: “Cantora da minha cidade e dos meus bairros, Aracy nasceu no Encantado, viveu no Engenho de Dentro, estudou no Meyer, até chegar como todos nós, a Ipanema. Nos encontrávamos comumente com ela, com a naturalidade dos que andam pela noite. Nos últimos anos, sua voz era um pouco rouca nas conversas, continuava clara – e malandra! – no cantar, e não é despeito, mas alto elogio, lembrar seus seios mitológicos, que uma vez, em arroubo de mesa de bar, ali, num canto da Boate Casablanca (Praia Vermelha), mostrou desafiadora pra Antônio Maria e pra mim, na irrefutável vontade feminina de provar que tinha mais do que voz bonita pra mostrar ao mundo. A última vez em que ouvi Aracy cantando, ela cantava Noel. Dizem que a primeira vez que cantou, cantou Noel. Haja fidelidade.

Acompanhei alguns momentos do percurso de Olivia Byington no caminho de Aracy de Almeida. Tinha coisa que eu havia esquecido totalmente, ou de que lembrava vagamente da voz de Aracy foi ressurgindo na interpretação – a mesma e toda uma outra coisa – da Byington, personagem de outra esfera e outra transformação, mas herdeira direta. É. De repente. Olivia se descobre herdeira, aquilo é dela. Um capital inestimável, a preservar, a ampliar, a desfrutar, a redistribuir. É o que fez aqui, neste CD, gorjeando, chilreando, harpejando e transformando, com molejo próprio e gratidão indisfarçável, tudo que recebeu de Aracy, o ‘samba em pessoa'” (01).
Trata-se, portanto, de um disco imperdível! São 21 músicas que foram rigorosamente selecionadas por Olivia. Entre elas estão composições clássicas- algumas da década de 1930 -, como: Último Desejo, Com Que Roupa e O Orvalho Vem Caindo, de Noel Rosa; Camisa Amarela, de Ari Barroso; e Quando Tu Passas Por Mim, de Antônio Maria e Vinicius de Moraes. Parabéns a Olivia pela inciativa, para esse regaste histórico da nossa música.
Por Angeline e F. Gomes e Winnie Barros.
Fonte consultada: 1. CD “A Dama do Encantado – tributo a Aracy de Almeida”, de Olivia Byington, SP: gravadora Biscoito Fino, 2004.