Com muita propriedade, o escritor, produtor musical e pesquisador carioca Marcelo Fróes (59 anos), narra no encarte do CD “Show 1º de Maio – 1980” – reeditado em 2011 – fatos históricos e políticos à música brasileira e, consequentemente, aos artistas que se dispuseram a “enfrentar” o governo militar com apresentações musicais individuais ou coletivas, assim:
“A ditadura militar iniciada com o golpe de 31 de março de 1964 encontrou resposta na música popular, quando os festivais de MPB começaram a vir recheados de canções de protestos e deram origem a um time de heroicos chaques da resistência musical. A resposta autoritária vem com o AI-5, baixado pela Presidência da República em 13 de dezembro de 1968 e que, para objetivar, puxou o freio de mão da valentia cultural e mandou para o exílio internacional muitos mestres da MPB. Todos como simpatizantes do comunismo, aqueles jovens cantores e compositores faziam a música que os chamados reacionários consideravam “não conformista”. O DOPS atuou até o início dos anos 80, mesmo depois da Abertura anunciada pelo presidente João Figueiredo, em março de 1979, e que teve um primeiro bom momento com a Lei da Anistia já em agosto daquele ano. Exilados puderam finalmente voltar para casa, dando fim a uma década de censura a letras de canções, shows vigiados em campus universitários e pouquíssimos festivais.

No final dos anos 70, com o processo de abertura política já viabilizado pela certeza do extermínio das organizações armadas de resistência, eventos coletivos em benefício de causas diversas, que não fossem de mero lazer cultural, eram vigiados como subversivos em potencial. Até os shows do Movimento SOMBRAS (Sociedade Musical Brasileira), realizados em 1975 por conta de temas ligados aos direitos autorais, foram vigiados por reunir cabeças pensantes e vozes ativas de prestígio junto ao grande público.
Com vistas de ter um colegiado de intelectuais para fomentar e acelerar o processo de democratização do país, o CEBRADE (Centro Brasil Democrático) foi fundado em 1978 por Oscar Niemeyer, Ênio Silveira e Sérgio Buarque. Presidida por Niemeyer a entidade – ligada ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) na clandestinidade desde 1964 – ainda contava com nomes como Antônio Houaiss e Chico Buarque em sua cúpula. Logo considerado pela ala conservadora da ditatura como um organismo subversivo e até “terrorista”, o CEBRADE foi imediatamente associado ao movimento operário e às questões sindicais que conduziriam às greves dos metalúrgicos. E, efetivamente, não muito depois a entidade realizou no Riocentro, sob organização comandada por Chico Buarque, um primeiro “Show 1º de Maio” na noite de 30 de abril de 1979, em benefício do “1º Encontro Nacional de Líderes Sindicais”. Naquela noite participara do show A Cor do Som, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Gal Costa, Simone, Zizi Possi, Vinicius e Toquinho, entre outros. Ziraldo foi o apresentador.
E assim a edição de 1980 foi preparada, novamente sob o comando de Chico Buarque e com Fernando Peixoto e Fernando Faro no roteiro e na direção, respectivamente. Desta vez, a produção teve a visão histórica de gravar o show e equipamentos foram instalados para captar o áudio. Enquanto era registrado para um LP (hoje, peça rara; coisa de colecionador) especial do CEBRADE (…).
Aproximadamente 30 mil pessoas estiveram no pavilhão do Riocentro naquela noite de 30 abril de 1980, “que contou com a participação do maior bloco de cantores e compositores já reunidos num mesmo espetáculo” – conforme informado nas notas não assinadas na contracapa naquele LP original de 1980 -, cujo projeto gráfico foi realizado por Ziraldo, novamente” (1).
O show teve início por voltas das 21:30 h e só terminou perto das 4 da madrugada. Foram muitos os artistas que subiram ao palco. Uma grande festa e sem incidentes. Muito menos com a polícia do regime militar. O CD em questão, remasterizado do LP, tem as seguintes gravações: O público, como um grande coral, inicia/termina o show com Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (Caminhando); Boca Livre com Toada (Na Direção do Dia); Alceu Valença com Ele Disse/Assum Preto; Milton Nascimento com Um Cafuné na Cabeça Malandro, Eu Quero Até de Macaco; João do Vale com Não Deixo de Pensar/Oricuri/Pisa na Fulô; Frenéticas com O Preto Que Satisfaz; Sérgio Ricardo com Vou Renovar; Moraes Moreira com Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira; e Dorival Caymmi com História de Pescadores.
O leitor poderá nos questionar: Por que, então, este retrospecto? Por vários fatores. Citamos dois: 1. O show em questão, não foi apenas uma apresentação musical coletiva, em si. Mas, um acontecimento histórico, haja vista que a ditadura durou até 1985; 2. A importante participação de Alceu Valença – assim como de outros artistas -, cuja voz já vinha ecoando entre os seus pares pela redemocratização do país há alguns anos. Por exemplo, três anos após o show/80, Alceu já era bem conhecido no Brasil e no exterior após os sucessos dos discos Cavalo de Pau ( 82) e Anjo Avesso (83), o jornalista Tárik de Souza (79 anos), quis saber se a fama havia mudado o cantor pernambucano. A resposta veio sem hesitação: “Continuo frequentando os mesmos bares, mesmos amigos, com as mesmas posições estéticas e políticas” (2).
Muito bem. Passados 45 anos daquele show no Riocentro – lamentavelmente na mesma noite do atentado militar, o qual poderia ter sido ainda mais trágico -, Alceu continua se posicionando política e musicalmente, pelas suas próprias palavras, pela sua poesia popular brasileira, pelas suas fascinantes composições, pela sua musicalidade, sua Olinda, enfim. Todas vivíssimas e nos fazendo BEM. Principalmente os seus fãs e admirados. Portanto, vale a pena ser ouvido o CD do show.
Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.
Fontes consultadas: 1. CD “Show 1º de Maio-1980”, de Alceu e outros. SP: Discobertas, 1980, reedição 2011, e 2. Maura, Julio. Pelas ruas que andei: uma biografia de Alceu Valença. – 1. ed. – Recife, PE: Cepe, 2023.