“Domingo”, o 1º disco de Caetano Veloso

“Meu coração não se cansa/De ter esperança/De um dia ser tudo o que quer” (Coração Vagabundo, de Caetano veloso, no disco “Domingo”, de 1967).

Segundo a cantora Vânia Bastos, “Caetano traduz sua sagacidade, profundidade e inteligência na forma como capta as coisas de seu tempo. Com toda a maestria, rapidez e calma com que um artista pode se expressar musicalmente, nos presenteia com belezas raras. Caetano dos muitos carnavais, dos amores, da tristeza e da ira, é Caetano das mesmas e das outras palavras. Filho de Dona Canô e irmão de Maria Bethânia, brasileiro como nós e universal como sua frase: ‘… cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…'”.

Estas palavras refletem bem tanto a pessoa quanto o artista que é Caetano. Um dos maiores cantores e compositores brasileiros de todos os tempos. No próximo dia 7 de agosto estará completando 83 anos de idade. Pelo menos, 60 deles dedicados à música, à poesia, à canção da vida, do amor. Para ele, “a canção continua o centro de tudo. É a sua maneira de se comunicar, de dizer ao mundo o que sente”, foi o que pesquisou Márcia Blasques para a Coleção “MPM Compositores”, volume 40.

A sua trajetória artística tem mostra quão ele grandioso, desde os Festivais de Músicas dos anos 60, 70. “Ainda muito influenciado pela sonoridade da bossa nova, Caetano preparava-se para lançar o primeiro disco de sua carreira. Inseguro quanto às suas qualidades vocais, o baiano convidava a amiga Gal Costa para gravar com ele. Assim, em 1967, saía Domingo, trabalho já defasado em relação aos caminhos que Caetano começava a percorrer”, garante a pesquisadora Márcia.

Naquele ano o LP foi lançado. Sete das 12 músicas são de Caetano. Uma dele e Torquato Neto. Uma de Edu Lobo. Duas de Gil e Torquato Neto e um de Sidney Miller. Fazem parte do repertório Coração Vagabundo, Avarandado, Domingo, Candeias, Maria Joana, entre outras. Na contracapa do disco consta o interessante texto de Caetano, dividido em três partes. A seguir:

I – “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. Por isso, eu considero necessária a sua presença neste disco em que se registra uma fase do meu trabalho em música popular, algumas das canções que eu fiz até agora. Por isso, e também porque desde a Bahia nós cantamos juntos, desde lá que ela faz com que meus sambas existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a composição e o canto: cada interpretação sua tem a mesma idade da canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de “Gal interpretando Caetano”, mesmo nas faixas em que ela canta músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as minhas. Gal cantando o que quer que ela goste, isso já é minha música, e quando eu canto ela está presente. O seu canto (como o de Gil ou de Bethânia) tem sido sempre meu parceiro.

II – Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga, o último samba de um amigo, isso é bom de cantar: uma música que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco estou enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz transformadas em música por Dori, Menescal, Francis (Hime) e procuro amá-las despreocupadamente, tento aceitá-las como prontas (não há mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram, não aquilo que eu lhes dei.

III – Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (Um Dia, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer tranquilamente que o risco de beleza que este disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio e também, mais longe, a Duda, a seu Zezinho Veloso, à Hercília, à Chico Mota, à meninas de Dona Morena, à Dó, à Nossa Senhora da Purificação e à Lambreta” (1).

Excelente gosto pela escrita. Passados quase 60 anos – 1967 à 2025 – dessa manifestação literária sobre seu primeiro LP, não precisa ser o leitor um especialista no ramo, para perceber o quanto o cantor/compositor, à época, um jovem de apenas 20 e poucos anos de idade, já demonstrava muito talento. E isso, incontestavelmente, ficou provado ao longo de brilhante carreira. Assim, temos um dos maiores artistas nacionais. As suas palavras falam per si daquele que seria (e é) o grandioso Velô: “A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro” (1).

Notinha de Saudades – Julho de 1980. No dia 9 perdíamos Vinicius de Mores (“A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontro pela vida”); no dia 29 perdíamos Paulo Sérgio (“A vida é uma coletânea de de experiências…”). Dois grandes expoentes da nossa música nacional. Já são 45 anos de saudades. Porém, o legado musical dos dois está vivíssimo para o consolo de fãs, admiradores e familiares. De lá para cá, tantos outros artistas nos deixaram, como a Preta Gil recentemente. Dói. A gente sente muito, mas é como diziam os antigos latinos, esse processo é inevitável: nascere, vivere e morrere.

Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.

Fonte consultada: 1. Encarte do CD “Domingo”, de Caetano Veloso e participação especial de Gal Costa, RJ: Philips, 1967 c/reedição em 2010.

Deixe um comentário