Amazônia: quem viver verá

“A Amazônia é a maior e mais desconhecida região brasileira, com 58% de sua área, a trigésima parte das terras emersas do globo, 1/5 da água doce do planeta, a maior floresta tropical, provavelmente a mais importante concentração de minérios do mundo, o mais importante dos rios (o Amazonas, com uma área de drenagem de 7,3 milhões de quilômetros quadrados uma descarga média de 200 mil metros cúbicos de água por segundo), 260 milhões de hectares de floresta com um potencial madeireiro de 4,5 milhões de metros cúbicos de madeira, mas apenas, 0,0008% da população mundial. 


Ponte Manaus-Iranduba, no estado do Amazonas. Fonte: Blog Flytour


Os contrastes entre esse enorme potencial de recursos naturais, permitindo que a região fosse considerada um armazém de matérias-primas, e o pequeno número de habitantes (3,55 milhões de pessoas nos 3,58 milhões de km2 da Amazônia Clássica, com uma densidade de 0,97 hab/km2, muito inferior à média brasileira, de 11,18% hab/km2), atraíram as atenções de muitos países para a ocupação e exploração da Amazônia. Como certos historiadores têm ressaltado, a região é cobiçada internacionalmente e para protegê-la o governo brasileiro – à base de uma teoria geopolítica – decidiu ocupar seus “espaços vazios”, incentivando a formação de frentes pioneiras. 

Elas atingiram os pontos extremos de uma fronteira de 11.248 quilômetros de extensão (72% de todas as fronteiras brasileiras), implantando atividades econômicas e entrando em contato com os primitivos habitantes da região, os índios. 

A região tem sido uma “área problema” semelhante ao Nordeste menos pela existência de doenças mortais (apenas a malária e a febre amarela são endêmicas), clima insuportável (as temperaturas variam de 22,1 a 27,90º C) ou animais ferozes (os mais temíveis são pequenos insetos) do que pela ausência de racionalidade na sua ocupação. Ela possui um complexo mecanismo ecológico que, assegura sua integridade e equilíbrio. Apesar das árvores exuberantes formando uma floresta compacta, seu solo é frágil:  ele mantém sua fertilidade com as folhas que caem das árvores, apodrecem e formam uma camada de humus superficial. Com suas copas fechadas, as árvores impedem que as chuvas precipite m diretamente sobre o solo, protegendo-o de erosão. E protegem-se entre si também equilibrando-se no emaranhado de cipós (sem eles, muitas árvores ocas e apodrecidas seriam derrubadas pelos ventos). Com seus frutos, alimentam um insuspeitado exército de pequenos ou microscópicos animais, que por sua vez exercem uma vigilância permanente contra as pragas de árvores. É todo um ecossistema interdependente que ao ser rompido – pela construção de estradas, desmatamento para a formação de pastagens ou lavouras e mesmo a simples presença humana – provoca reações e transformações que o próprio colonizador ainda é incapaz de perceber inteiramente ou de prever no futuro.     


A mais visível delas tem sido sobre a própria natureza. Muitas áreas desmatadas começam a mostrar-se inúteis após três ou cinco anos (como aconteceu com 650 mil hectares da Zona Bragantina, próximo a Belém, degradados por uma colonização empírica iniciada nos fins do século passado), são abandonadas e formam uma paisagem estranha ao ambiente amazônico: árvores tortas, solo coberto de areia, completa ausência de animais, desaparecimento dos cursos de água e irregular presença de chuvas.   

Outras consequências menos visíveis dessa ocupação já começam a ser avaliadas. Como as doenças novas, provavelmente ligadas ao desmatamento e introdução na área de colonizadores de outras regiões. Duas delas, que até 1963 jamais haviam sido registradas começam a preocupar: a febre negro de Lábrea, uma espécie de hepatite maligna que apareceu na mesma época de construção da estrada Manaus-Porto Velho, e a febre hemorrágica de Altamira, surgida com a colonização da Transamazônica. 

Todos esses fatos e as previsões fatalistas de cientistas estrangeiros não parecem ser suficientes para conter as frentes econômicas, que se ampliam com velocidade espantosa. Embora a Amazônia continue sendo considerada um deserto humano, ela já possui “ilhas” demográficas altamente significativas (Belém com quase 800 mil habitantes, Manaus com 390 mil e novas cidades surgem anualmente). As possibilidades agrícolas da região, com pelo menos 243 mil quilômetros quadrados de solos de alta fertilidade (10% de sua extensão), estimulam projetos mais modernos, sobretudo para a exploração de culturas comerciais de exportação. Para a instalação de fazendas, está sendo ocupada uma área de 8 milhões de hectares, apenas para os projetos agropecuários com recursos dos incentivos fiscais. E as alternativas para a mineração ampliam-se anualmente: a Amazônia tem as maiores jazidas do mundo de ferro, cassiterita, manganês e sal-gema, grandes reservas de bauxita, ouro e diamantes, em exploração ou a explorar. Os indícios de outros minerais (cobre, carvão, sulfatos, urânio e tório) são animadores. Para facilitara industrialização, a região dispõe um potencial hídrico avaliado em 66 milhões de kw. A indústria madeireira, que começa a instalar-se em maior escala, já dispõe  de uma área explorável pelos métodos atuais de 36,5 milhões de hectares, com 1,3 bilhão de metros cúbicos de madeira.          

Apesar de todas essas possibilidades, a Amazônia é quase desconhecida. O primeiro grande levantamento dos seus recursos naturais, através do Projeto Radam, ainda não foi concluído (só em 1977 os dados por ele obtidos poderão ser utilizados integralmente). E até que ela seja zoneada (a primeira tentativa foi feita em 1972, mas precariamente) serão necessários muitos anos. Se esse zoneamento for feito (com a localização de atividades econômicas em regiões ecologicamente adaptadas a elas), é provável que não seja utilizado. Afinal, mesmo as recomendações do Projeto Radam não estão sendo seguidas: há pressa em explorar a região e por isso sua ocupação é aceleradíssima” (1).      
Então, vamos por parte, à análise do conteúdo citado acima, como tal qual foi publicado à época, ou seja, entre aspas.  Primeiro, trata-se de um texto de meados da década de 1970, proposto pelo autor pesquisado como dissertação sobre o tema “A Amazônia“. De acordo com esse mesmo pesquisador, “uma redação exige inteligência, emoção e imaginação. Portanto, o ato de escrever, por sua vez, depende de um constante e vigilante aprendizado, onde haja condições vivenciais, capacidade e poder criador” (1). Segundo, os dados ora apresentados sobre a região em questão, possivelmente eram oficiais ( e estavam disponíveis) pelo governo federal à época. Assim, algumas coisas mudaram, outras não, isto é, em termo de recursos naturais, população, economia, etc.  
Passados quase 50 anos dos fatos narrados no texto até os dias atuais, nem tudo permaneceu estanque, é óbvio, por exemplo: 1. A migração populacional de lá para cá cresceu de forma preocupante (nos anos 80, o êxodo rural fazia Manaus crescer de 12% a 15% ao ano). Hoje, Belém e Manaus habitam mais de 4 milhões de pessoas. São duas metrópoles regionais; 2. Em meados dos anos 70, a Zona Franca de Manaus era uma criança em pleno desenvolvimento com apenas 8 anos de idade. Atualmente, é uma senhora de 53 anos e com visíveis sinais de decadência, principalmente na produção industrial; 3. O desmatamento irracional da floresta por queimadas para fins agropecuária e/ou extração de madeira, é uma dura realidade. No Pará, o crime nesse setor deixou de ser “coisa velada”, para afrontar o poder público, seja estadual, seja federal; 4. O tráfico internacional de drogas é o golpe mais contundente. Pior: o Amazonas – tanto o Estado como o rio – não só tem as suas fronteiras “utilizadas” por toda espécie de traficantes para “escoar a produção” que vai para o resto do Brasil e para parte do mundo; 5. As autoridades federais estão, com certa frequência, “desbaratando fazendas” onde impera o trabalho escravo no meio da selva; 6.  Serra Pelada, nem citada no texto, já foi deveras destruída; Carajás terá o mesmo fim. Sua produção mineral vai parar na Europa, na Ásia; 7. “Os primitivos habitantes”, estão cada vez mais acoados e fortemente cercados pelos interesses do sistema econômico (dentro e fora do país); 8. As ONGs (nada contra ONGs, Fundações, Representações, Sindicados, Associações, etc, que verdadeiramente representam os interesses dos seus associados; que lutam por uma causa justa.) estão por todos os quadrantes da selva. Quais delas realmente são sérias? 9.  O potencial hídrico amazônico, como transformá-lo em riqueza e benefício social e comercial de maneira sustentável? A Hidrelétrica de Balbina, no rio Uatumã, distante 100 km de Manuas, que provocou um escândalo por parte de estudiosos e ambientalistas nos anos 80 na região, foi uma medida acertada?
São muitos os questionamentos. Além dos aqui sucintamente citados, há uma lista imensa de outros tão graves quanto estes. De uma coisa todos por aqui têm certeza e não precisa ser pesquisador ou cientista sobre o tema para esta constatação: com o presente modelo de desenvolvimento econômico não há como se obter progresso do binômio HOMEM x NATUREZA. Os recursos naturais vão saindo e a Amazônia ficando depenada. Lá pelos vindos anos de 2070, as garras da cobiça desenfreada estarão mais afiadas contra os indefesos autóctones, em todos os sentidos: social, cultural, político, econômico, etc. Por quê? Porque tudo gira – hoje já é assim -, em nome da sustentabilidade dos recursos naturais, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, quer dizer, não pode ser feito isso; não se pode fazer aqui. Enquanto, na prática, a exploração de tudo e de todos (índio, cablo, ribeirinho), corre (e ocorre) livremente, muito mais grave do que ocorreu no  no auge do ciclo da borracha entre 1890 a 1910. 
Em 1996 o Boi-Bumbá Garantido relançou um sucesso de 94 e 95 na interpretação de David Assayag (52), Lamento de Raça, de autoria do poeta parintinense Emerson Maia (65). Cabe aqui, uma reflexão sobre esse incontestável poema, cujos versos estão em plena sintonia com o tema ora abordado:

O índio chorou, o branco chorou
Todo mundo esta chorando
A Amazônia está queimando
Ai, ai que dor
Ai, ai que horror
O meu pé de sapopema *
Minha infância virou lenha
Ai, ai que dor
Ai, ai que horror
Lá se vai a saracura 
Correndo dessa quentura
E não vai mais voltar
La se vai onça pintada 
Fugindo dessa queimada 
E não vai mais voltar
Lá se vai a macacada 
Junto com a passarada
Para nunca mais, nunca mais voltar
Virou deserto o meu torrão
Meu rio secou, pra onde vou?
Eu vou convidar a minha tribo
Pra brincar no Garantido
Para o mundo declarar 
Nada de queimada ou derrubada
A vida agora é respeitada 
Todo mundo vai cantar
Vamos brincar de boi, tá Garantido
Matar a mata, não é permitido (2).
* palavra bem conhecida pelo caboclo. Significa raiz chata; uma espécie de tábua em torno do tronco. A samaúma produz enorme sapopemas. Vem do tupi sau’pema.
Amigos leitores, o recado está dado. Não se trata de denúncia, mas de constatação. Estudem a Amazônia; procurem saber a realidade dos fatos. Nem tudo que é veiculado pelos meios de comunicação é verídico; sempre há algo que não é revelado para o grande público. Só divulgar o Encontro das águas; a Pororoca; o verdejante das copas, os bichos exóticos, significa preservação ambiental ou sustentabilidade de recursos naturais.  
Pesquisa e texto por Francisco Gomes
foto por Winnie Barros
Fontes
1. Tersariol, Alpheu. Manual Prático de Redação e Gramática. – SP: Editora Li-Bra, s/d, pp. 180/182.
2. CD Lendas, Rituais e Sonhos, com David  Assaiag, Garantido, Manaus/Parintins, 1996.

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