Primeiramente, vamos às aspas, ou seja, o texto a seguir na sua íntegra. No final, faremos um pequeno comentário sobre a autora e a sua publicação, ora em análise pelo Facetas.
“… a democracia será sempre parcial, incompleta”.
“O direito à cultura é um direito fundamental. Pois a cultura não é um luxo de privilegiados mas uma necessidade de todos os homens. Um homem condenado à ignorância é alguém a quem foi roubada uma parte do seu direito à vida.

Todos nascem para uma vida verdadeiramente humana, e que não significa apenas o direito à saúde, ao trabalho, ao pão e à casa, mas também direito à liberdade e à dignidade de saber, escolher e criar.
E é o direito à cultura que garante e defende os outros direitos, já que o homem sem cultura é sempre enganado e explorado. Pode ser explorado pelo capitalista e pode ser explorado pelo falso revolucionário. Pode ser iludido pelo patrão a quem dá o seu trabalho e pode ser iludido pelo governo a quem dá o seu voto. Pode ser enganado pela propaganda política e pode ser enganado pela propaganda comercial.
E é por isso que a cultura é necessária à liberdade. Liberdade significa possiblidade e o homem que não tem acesso à cultura da sociedade e do tempo em que vive não tem dentro desse tempo e dessa sociedade uma possiblidade real de escolher e decidir. Onde a maioria das populações estiver culturalmente alienadas, a democracia será sempre parcial , incompleta e, em muitos aspectos, formal. E no mundo em que vivemos é necessário que a cultura possa funcionar como antipoder.
Muitas são, na verdade, as formas de opressão que na nossa época surgem umas após as outras. Capitalismo explorador, fascismo, totalitarismos ideológicos. E ao lado destes sistemas de opressão diretamente políticos existem formas de opressão que, porque não são diretamente políticas, são mais difíceis de de detectar e combater.
Assim a ditadura dos técnicos que, sob falsos pretextos econômicos, praticam um uso anti-humano da técnica, está a criar problemas de poluição que põem em perigo a saúde das populações e a saúde da própria Terra em que vivemos e da qual viemos. Em frente deste perigo a nossa salvação exige um imenso esforço cultural coletivo que se opunha ao uso anti-humano da técnica. Neste ponto, a cultura não é só defesa da nossa liberdade e dignidade. É a defesa da nossa vida e da nossa saúde. As populações não podem permanecer passivas perante os perigos que as ameaçam. E é evidente que a ignorância e a alienação cultural conduzem à passividade.
E não nos devemos deixar iludir pelas miragens do falso desenvolvimento industrial. Só uma indústria que respeita o ambiente, que respeita a tradição cultural dos povos e que respeita a saúde e a vida de todos e de cada um é realmente uma indústria a serviço do homem.
O verdadeiro desenvolvimento só nascerá desenvolvimento cultural de toda a população de cada país. E essa é a grande transformação que poderá salvar o mundo em que estamos. Esse desenvolvimento cultural não virá transformar apenas os sistemas políticos, virá transformar em todos os seus planos e aspectos da nossa vida quotidiana.
Pois a cultura não se faz para estar nos museus, mas sim para estar na nossa vida. Porque é a cultura que ensina o homem a escolher, construir e criar a própria vida, em vez de a suportar” (1).
A publicação acima tem mais de 40 anos e seu contexto permanece atualíssimo. A cultura, na no sentido lato sensu quanto no stricto sensu, não perecerá jamais, independente de qual seja o seu povo, sua criação e a sua formação culturais. Como bem o diz a citada escritora: “O direito à cultura é um direito fundamental”, ou ainda, “Onde a maioria das populações estiver culturalmente alienadas, a democracia será sempre parcial, incompleta”. Não há, portanto, autêntico desenvolvimento – em todos os sentidos -, sem que haja o “desenvolvimento cultural de toda a população de cada país”.
Mas, que foi Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)? Foi uma das maiores poetisas portuguesas do século passado. Escritora, tradutora, escreveu para revistas e jornais. Participou com veemência de movimentos políticos do seu país. Motivada pelos filhos, decidiu escrever contos infantis. Foi a primeira mulher portuguesa a ganhar o Prêmio Camões.
Amigo (a) leitor (a) viva intensamente a sua formação cultura, assim como a cultura de sua gente. Porque ela “ensina o homem a escolher, construir e criar – juntos três verbos de três conjugações diferentes – a própria vida”.
Notinha útil – Aqui a nossa homenagem pela passagem do Dia Nacional da Consciência Negra, que ocorrerá no próximo dia 20, com estes versos do poeta africano (Costa do Marfim), Bernard Dadié (1916-2019): “Eu vos agradeço, meu Deus/por me ter criado negro/O branco é uma cor de circunstância./O negro, a cor de todos os dias,/E eu carrego o mundo desde a aurora dos tempos/E meu sorriso sobre o mundo, na noite, criou o dia”.
Por Angeline e Francisco Gomes e Winnie Barros.
Fonte: 1 (Sophia de Mello Breyner Andresen – in “O Estado de São Paulo”, 06 de junho de 1982).