Fala-se de Chaya Pinkhasovna Lispector, ou melhor, Clarice Lispector, que somente veio a naturalizar-se brasileira em 1943. Escritora, jornalista e advogada, autora de ensaios, contos, romances, novelas e crônicas. Sua obra é de singular importância na literatura brasileira. Por isso, é considerada uma das escritoras brasileiras mais notáveis do século passado, e a maior escritora judia desde Kafka, devido ser sua natureza densa e original, na qual busca “uma linguagem especial para expressar paixões e estados da alma”, utilizando “recursos técnicos modernos como a análise psicológica e o monólogo interior”.

Essa autora “expressa uma visão profundamente pessoal e existencialista do dilema humano, num estilo que se caracteriza pelo vocabulário simples e pela estrutura frasal elíptica. Sua ficção transcende o tempo e o espaço; os personagens, postos em situações limite, são com frequência femininos e só secundariamente modernos ou mesmos brasileiros” (1). “O principal eixo de sua obra é o questionamento do ser, o “estar-no mundo“, a pesquisa do ser humano, resultando daí o chamado romance introspectivo”, isto é, essa literatura intimista busca fixar-se na crise do próprio indivíduo, seja na sua consciência ou inconsciência.
“Grande estilista, utiliza a linguagem mediante a interiorização dos recursos expressionistas, procurando integrar o narrador na existência dos personagens que compõem a narrativa. Sua prosa de caráter intimista, volta-se para os conflitos do ser humano, aprofundando-se na tensão entre a plenitude e o vazio existenciais, entre a paixão e a racionalidade. Seu estilo é dramático, marcado por uma ironia inteligente, em conflitos descritos por frases contidas e por formas de narração ousadas e inovadoras” (2).
Quando chegou por aqui ainda era uma criancinha. Porém, o Brasil vivia efervescentes ideias, a procura de novas tendências literárias. Resultando, portanto, na Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922. Chaya foi vivenciando toda aquela movimentação artística, principalmente quando mudou-se para o Rio aos 16 anos. Na capital federal não perdeu tempo e ainda muito jovem entrou de corpo e alma para a literatura. Com apenas 22 anos, lança seu primeiro romance: Perto do coração selvagem, cujo enredo é uma visão interiorizada do mundo da adolescência. Muito bem aplaudida pela crítica. Recebeu o Prêmio Graça Aranha.
Em 1944, recém-casada (1943-1959) com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos: Pedro e Paulo, o casal vai morar em Nápoles, onde ela serviu num Hospital da FEB durante a 2ª Guerra Mundial. Em 1946, volta ao Rio onde publica O lustre. Algum tempo depois segue para uma longa temporada na Suíça e EUA. Retornando, depois, ao Brasil em definitivo.
Sua produção literária é vasta. No entanto, suas principais obras são: Os romances Perto do coração selvagem (1943), A paixão segundo G.H. (1964), considerado por muitos estudiosos como sendo o seu livro mais importante e Água viva (1973); sua melhor prosa consta nos contos A legião estrangeira (1966) e Laços de família (1972); a novela A hora da estrela (1977) ; além de outros trabalhos de destaque como A moça no escuro (1961), A “via crucis” do corpo (1974), etc.
O jornalista, escritor e mestre em Comunicação pela UFRJ, José Castello, assim se manifesta sobre a escritora e a sua obra mais festejada:
“Pouco antes de morrer, em 1977, Clarice Lispector decide se afastar de inflexão intimista que caracteriza sua escrita para desafiar a realidade. O resultado desse salto na extroversão é A hora da estrela, o livro mais surpreendente que escreveu. Se desde Perto do coração selvagem, seu romance de estreia, Clarice estava de corpo inteiro, todo o tempo, no centro de seus relatos, agora a cena é ocupada por personagens que nada se parecem com ela.
A nordestina Macabéa, a protagonista de A hora da estrela, é uma mulher miserável, que mal tem consciência de existir. Depois de perder seu único elo com o mundo, uma velha tia, ela viaja para o Rio, onde aluga um quarto, se emprega como datilógrafa e gasta duas horas ouvindo a Rádio Relógio. Apaixona-se então, por Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino que logo a trai com uma colega de trabalho. Desesperada, Macabéa consulta uma cartomante, que lhe prevê um futuro luminoso, bem diferente do que a espera.
Clarice cria até um falso autor para seu livro, o narrador Rodrigo S.M., mas nem assim consegue se esconder. O desejo de desaparecimento, que a morte real logo depois consolidaria, se frustra.
Entre a realidade e o delírio, buscando o social enquanto sua alma a engolfava, Clarice escreveu um livro singular. A hora da estrela é um romance sobre o desamparo a que, apesar do consolo da linguagem, todos estamos entregues” (5).
Esse consagrado livro da nossa literatura, cuja personagem é uma pobre moça alagoana do interior em busca de sobreviver na cidade grande, como relata acima, o professor Castello. “A versão cinematográfica desse romance, dirigida por Suzana Amaral em 1985, conquistou os maiores prêmios do Festival do Cinema de Brasília e deu à atriz Marcélia Cartaxo, que fez o papel principal, o troféu Urso de Prata em Berlim em 1986” (1).
A literatura universal está repleta de correspondências mantidas por anos a fio por poetas, escritores, sejam amigos ou não. Porém, nada supera Cartas perto do coração, ou seja, a intensa troca de cartas, por longos anos entre dois jovens escritores que se tornaram destaque na literatura nacional: o mineiro Fernando Sabino e a pernambucana Clarice Lispector.
Relata Sabino que em janeiro de 1944, quando “mal havia completado vinte anos e recebia em Belo Horizonte”, um exemplar de “Perto do coração selvagem”, com a seguinte dedicatória: “Rio, 8.1.44, a Fernando Tavares Sabino, homenagem sincera de Clarice Lispector”. Completa, o escritor: “Eu nem sabia quem fosse. Fiquei deslumbrado com o livro. Fiquei deslumbrado com ela”.
“A partir de então tivemos um convívio diário”, quer dizer, trocavam ideias sobre tudo por meio de cartas. Isso ocorreu entre 1946 a 1969. “Era mais de que a paixão pela literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens ‘perto do coração selvagem da vida’: o que transparece em nossas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores” (6). Esclarece o mineiro.
En passant, as missivas divulgadas em Cartas perto do coração foram cedidas pelos familiares dos dois escritores, dos acervos dos descendentes. Trata-se, portanto, de um livro fascinante! Por exemplo, num trecho da carta de 06.07.1946, o jovem de apenas 23 anos, diz a Clarice:
“Você avançou na frente de todos nós… Apenas desejo intensamente que não avance demais, para não cair do outro lado. … Tem de ser equilibrista até o final… apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame ainda a percorrer – sempre exibindo para o público um falso sorriso de serenidade”.
Numa outra, dez anos depois, em 26.12.1956, ele escreve:
“O importante não é dizer, é saber… É todo mundo ver que o rei está nu, e não dizer nada, para que uma criança possa exclamar: – O rei está nu!”
Passados treze anos, ou seja, a 29.01.1969, Sabino grafa:
“Esta carta não lhe dá a medida de como eu quero bem e admiro o seu novo livro (A legião estrangeira), como tudo que vem de você… Certamente vou relê-lo como aos demais, uma, muitas vezes, até que ele também acaba fazendo parte de mim”.
Por sua vez, em 21.04.1946, a jovem escritora de apenas 26 anos, escreve ao amigo, de Berna, Suíça:
“Helena, Fernando, Paulo, Otto, esta carta em conjunto parece discurso – é que eu desejaria contar a cada um de vocês um pouco da viagem e acabaria no artifício de não repetir fatos ou palavras…”