"O Ritual do Pagode", de Martinho da Vila

  
foto extraída do encarte
        Na semana passada, ou melhor, no dia 12 deste mês, o SENHOR Martinho José Ferreira completou 81 anos de vida. Nasceu em Duas Barras, interior do Rio de Janeiro num “encharcado sábado de carnaval de 1938. Único filho homem do casal Josué e Teresa Ferreira, entre quatro filhas mulheres.
       Fala-se do homem, do pai, do artista, enfim, do ser humano, mais conhecido como Martinho da Vila. Cada fã seu tem-no como um parente querido próximo. “Ele é símbolo de uma reunião. Mas sua música não faz concessões. Ao contrário, ela desceu o morro ganhou espaço no asfalto. Martinho promoveu uma integração pela sedução. Sua ginga, sua gíria e seus sonhos abriram caminho no meio da mídia e dos meios de comunicação e estão aí, nos lembrando de sonhos comuns e nos trazendo a certeza de que a cultura brasileira é mesmo multicor” (1). 
       Esse gigante da música brasileira que canta e encanta, que cria e recria, que faz versos e rimas, que enche nossos corações de pulsações e os olhos de contemplamentos, não é apenas um compositor, um cantor, um sambista, mas também um historiador da música, da vida. Sua biografia é bela, sua discografia idem e servem de exemplos aos nossos viver e ouvir.
       Muito embora, antes de existir o Facetas, nosso pequeno arquivo (não confundir com dados da internet) já dispunha de material suficiente para bons 3 ou 4 artigos sobre Martinho, hoje nos reportamos apenas sobre um relato feito pelo próprio sambista num de seus discos. Leiamos.
       Na contracapa do LP Batuqueiro, de julho de 1986, consta um memorável texto sob o título: O RITUAL DO PAGODE. Diga-se de passagem que adquiri esse disco no último mês de dezembro, na “Praça do Sebo”, no centro do Recife (PE), quando por lá “garimpava” alguns vinis, fazendo-me acompanhar por uma das minhas filhas, que, apesar de jovem, tem toda paciência nessas buscas.
       Vanos, então, ao primordial texto:
       “Batuques, pagodes, partidos-altos, batuqueiros, pagodeiros e partideiros se confundem e se fundem, desde o início quando tudo começou nas senzalas. 
       Há diferenças musicais quase imperceptíveis entre o partido alto e o samba de partido-alto. Este é quase um samba de terreiro atualmente chamado de “quadra” que são feitos para animar os ensaios. Tem a primeira parte definida e a segunda improvisada sem maiores regras. Já o partido-alto é composto com um refrão e uma parte improvisada em cima do tema. Tem característica rítmica definida e maneira especial de dançar. O partido-alto creio eu surgiu nas todas de batucadas que já não existem mais… Ah! como eram emocionantes. Nas escolas de samba, quando terminavam os ensaios e as visitas iam embora, começavam as batucadas. 
       Eram um barato! Recolhidas as peças de bateria, ficavam somente um ou dois pandeiros. Formava-se uma roda, o partideiro puxava o refrão, a turma repetia e firmava o compasso com palmas de mão. Seguia-se um desfio de versos e pernadas. No meio da roda, um partideiro animando e um outro “plantado”, mas não se dava rasteira por traz, isto é, ninguém ‘pegava’ pelas costas, muitos preferiam “plantar com os joelhos e pontas dos pés unidos, calcanhares separados, mas em ambos os casos, o “plantado” não podia se mexer. Os mais folgados plantavam com uma perna só e a outra fazendo um quatro, o que facilitava muito o corcoveio ou o salto da banda, mas, nesta posição o parceiro preferia sempre bater “o firme” e quando pegava de jeito a queda era feia. Muitos braços se quebravam nas batucadas.
       Alguns especialistas batiam de “letra” o parceiro caia de lado. Era desmoralizante. Neste caso o batuqueiro que aplicava a “letra”, corria o risco de cair se o “plantado” estivesse bem firme no chão. Mais desmoralizante ainda. O “amarrado”, era a pernada mais bonita. Com o joelho desequilibrava-se o parceiro e encaixava-se o  gancho com a mesma perna. Não era necessário força e a queda era lenta.
       Os grandes batuqueiros eram chamados “pernas”. Lucas era um reduto de “pernas”. Eu ainda miúdo batuqueiro com muitos “pernas” famosos como Timboca, Juarez, o Ailton Cuiqueiro, etc” (2).
  
       O compositor prossegue listando os nomes dos grandes mestres. Sem, no entanto, deixar de lembrar dos “sagrados” nomes, também, do partido-alto.
         “As batucadas se acabaram, mas a da dança do partido alto ficou. E como é bonito nos pés de Ubirani do Cacique, bem como nos de Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, Itacy do Império, Tia Nenen e Tia Zezé do Salgueiro, Genilson Veneno da Mangueira, Dona Doca e toda a velha Guarda da Portela. 
       Enquanto o canto do partido ganhou novas formas, penetrou nos grandes acontecimentos musicais, entrou no disco e atingiu o consumo, os pagodes onde são iniciados todas as formas de samba dançável livremente, foi chegando de mansinho e continua ganhando terreno. Dos fundos de quintal dos subúrbios, foi para as portas de botequins, no centro da cidade, casas noturnas, teatros” (2). 
       Logo o leitor perceberá a sequência cronológica e histórica dos temas iniciadas no primeiro parágrafo, narrado pelo autor de forma brilhante. Somente quem é do ramo como ele, pode falar com tanta propriedade assim. Observemos, agora sobre o pagode.
       “O pagode é uma festa e como gênero da música é qualquer samba com a linguagem e temas do cotidiano. A Fina Flor do Samba – por exemplo -, no Teatro Opinião era um grande pagode assim como o foi também o Zicartola, organizado em 64 na rua da carioca e, mais ou menos na mesma época Candeia organização o Grupo de pagodeiros registrado em disco como Mensageiros do Samba,  no qual faziam parte o próprio Candeia tocando cuíca, e mais, Casquinha, Bubu, Davi do Pandeiro, Arlindo e Picolino. O Zicartola deu origem ao Grupo Rosa de Ouro formado por Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Jairo do Cavaquinho, Elton Medeiros, Anescarzinho, Aracy Cortes e Clementina de Jesus. Que maravilha era o Rosa de Ouro!” (2). Continua até chegar ao nome de Zé Kéti com o seu Grupo A Voz do Morro.
       
       Dentro desse contexto, o historiador do samba, ora analisado, chega a seguinte constatação, ainda nos idos dos anos 80: “O pagode já está acontecendo no ambiente familiar dos apartamentos”. E, sendo mais preciso, garante:
       “Pra se formar um pagode em casa, basta reunir um grupo de amigos que esteja a fim de vadiar em comunidade, servir cachaça, cerveja e batida como bebida; mortadela,  salaminho e pastel ou qualquer outro salgadinho como petisco. Colocar um disco na vitrola e deixar o pessoal batucar em cinzeiros, garrafas, copos, pratos, panelas, cada um a sua maneira, tentando acompanhar o ritmo. Os mais desinibidos devem incentivar os outros a libertar o corpo, soltar as gargantas, mexer com as mãos. Devagarinho vai se criando o clima, e antes da terceira hora o pagode está formado” (2).
       Finalizando, o mestre ao brincar com as palavras e com o ritmo a que se propõe comentar, conclama: “Por favor,nada de serviçais uniformizados, Misturem os empregados com as visitas, pois nego trabalhando em pagode sem poder participar é tortura. Bem, fica melhor, sem aparelhagem de som, mas tem que ter uma boa turma que esteja por dentro dos refrães e partidos, um que toque tan-tan, outro pandeiro, um outro cavaquinho e um pagodeiro que saiba os sambas que a gente bota no ar, mas não podem faltar os sons do Zeca Pagodinho, do Almir Guineto, Bezerra da Silva, Grupo Fundo de Quintal…” (2)
       Festa, festa, festa. Você acha termina aí? Nada disso. Tem uma explicação para o resultado de tudo isso. Que é “uma sensação de liberdade” no dia seguinte. Sem, no entanto, deixar de cumprir o aviso: “As bebidas quentes sejam trazidas pelos convidados e que as geladinhas sejam compradas na hora, aos poucos, com todos participando da vaquinha”.
       Porém, para que haja um bom pagode, a exigência número UM é esta: “Pagode sem mulher dando sopa não dá pé e só fica realmente “da pesada” quando rola uma sopa com várias colheres no mesmo prato pra se tomar em conjunto. É O RITUAL!” 

       Este é a receita da alegria, da ginga, da música, do samba´, da amizade, da pacificada convivência em comunidade, proposta pelos Mestre Martinho da Vila, à época com menos de 50 anos de idade, hoje, com mais de 80, mas, sempre um entusiasta do sorriso puro e da paz entre todos.
        Que o carnaval de 2019, em todo o país, seja de paz e harmonia entre foliões e não foliões. Que além da diversão, possamos refletir sobre as nossas questões individuais e sociais. Esta é a nossa mensagem.
         Pesquisa, texto e arte: Francisco e Angeline Gomes
         Fontes:
         1. LP BATUQUEIRO, de Martinho da Vila, Gravadora RCA, 1986.
         2. Col. MPB Compositores (encarte), Martinho da Vila, vol. 9 Ed. Globo/RGE, 1997.

4 comentários em “"O Ritual do Pagode", de Martinho da Vila

  1. Parabéns professor pelo excelente texto!Eu sempre me questionei o que eu faria para me apaixonar pela leitura e hoje já tenho um direcionamento por onde começar!Eu geralmente começo a ler um livro e ao chegar no meio do livro eu desisto por não sentir a emoção ou o prazer que tanto ouço falar que a leitura proporciona ao leitor!Lendo textos assim, que retratam a realidade ou contam a historia de pessoas que a gente conhece ou ouvimos falar, consigo entender o porque os leitores amam ler e dizem sentir prazer na leitura!Eu agradeço a Deus a oportunidade e o privilegio de ser um de seus alunos.Espero um dia melhorar meus argumentos textuais, quem saber ter mais amor pela cultura da leitura de livros!Digo cultura de ler livros pois geralmente, leio muito artigos na internet! Não sei o porque amo tanto ler textos na internet!Enquanto ainda não encontrei ou não tenho estímulos pelas leitura de livros sigo lendo artigos na internet.Enfim só quero estimular você professor que continue a nos presentear com esse maravilhosos artigos.Lhe desejo um excelente final de semana.

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