A iluminante Áurea Martins

Há algum tempo, desde que ouvi um CD e vi um DVD de Áurea Martins, vinha querendo fazer um artigo sobre ela. Confesso que fiquei encantado com tudo: sua beleza negra, sua voz marcante, seu talento, sua obra. Porém, precisava de conteúdo mais robusto. Sei que encontraria material na infinita internet. Mas… Mas sou do tempo em que se exibia o livro, o dicionário, o vinil, o jornal, a revista, etc. A minha geração ainda fica deslumbrada com esses meios de informação, de consulta, de aprendizado. 
Agora, vivendo-se a era do mundo cinzento por inteiro, em decorrência dessa pandemia, a partir do Oriente, cujas restrições individuais e coletivas são muitas. Obedeci o “fique em casa” lembrando-me desses versos (Zyliana/86-Zé Ramalho): Feche o quarto com cimento/E veja que mundo cinzento/E como ficou o verbo amar/E como ficou o verbo amar.

Nessa de confinamento apelei para o entretenimento via TV, além da música e dos livros, é claro. Tive sorte. A programação do canal que acessei, em 13 de abril de 2020, não estava “infectada”, ou seja, era de ótima qualidade:  reprise do Programa “Sr. Brasil“, da TV Brasil/Cultura, do Rolando Boldrin. Quem estava lá? Áurea Martins com Vidal Assis. Foi ela que noticiou o lançamento de sua biografia, por Lúcia Neves: Áurea Martins: a invisibilidade visível, em dezembro de 2017. Comentei com a minha filha Winnie, e no início deste mês de junho, recebi o livro em casa, aqui em Manaus (AM), entregue pelos Correios.
Trata-se de uma obra imperdível. Na qual literatura e música se completam. Além de relatos históricos e sociológicos precisos. Há meses não havia lido um livro com essa abordagem, tão completo. Rico em informações (e sem minúcias); ótima qualidade gráfica (editora Folha Seca); fotos de LPs, CDs e DVD da artista; fotos dela com personalidades públicas (artistas ou não); de lugares dentro e fora do Brasil; e, principalmente, álbum de família, que totalizam mais de 80 fotografias.
Áldima Pereira dos Santos, artisticamente conhecida por Áurea Martins, completou 80 anos na semana passada, ou melhor, no dia 13 de junho. Inclusive foi homenageada la live da cantora Teresa Cristina. Nascida em 1940, no bairro de Campo Grande, num ambiente rural, na zona oeste da capital, distante 50 km do Rio de Janeiro (RJ), onde viveu até os 20 anos. Filha de Antônio Joaquim dos Santos e Alzira Pereira dos Santos. O casal teve dois filhos: Áldima e Elízio, dois anos mais novo que a irmã.
Campo Grande foi colonizado pelos portugueses e os padres. Esses últimos tiveram relevante papel no processo de socialização dos moradores. Por exemplo, a “formação musical do bairro e de toda a região” foi feita pela Igreja Católica. “O ensino de música aos escravos da Fazenda de Santa Cruz foi a primeira iniciativa” dos religiosos na localidade, a partir do século XVII. Possivelmente o interesse da filha dos Santos  pela musica nascera aí, influenciada por seus pais e avós maternos.
A menina não conheceu seus avós paternos: Manoel Joaquim, que era português e Vitória Romana, que era negra. Seus avós maternos: João Marceneiro “foi uma figura marcante na vida (da neta). Foi ele quem financiou os estudos primários (dela em colégio de freiras)”. Porém, seu convívio com a avó Elisa foi curto. Tinha menos de dois anos de idade quando a mesma faleceu. “Elisa tocava banjo e talvez venha daí a primeira influência em sua musicalidade”. Segundo Áurea, seu pai “se parecia com o Seu Jorge e, embora não fosse músico profissional, tocava violão”. (1).
“Áurea enfatiza a excelência da educação daquela época”. Tirando as travessuras de criança, ela era dedicada aos estudos e tinha uma ótima caligrafia.. Passou em primeiro lugar no exame de admissão ginasial na prova de Português. Suas principais características eram ser criativa e estudiosa, “que a fizeram querida e respeitada pelos colegas” (1). 
A partir dos anos 60, a jovem começou “a conviver com outras pessoas”, fora das suas origens. Dando “os primeiros passos em direção à metrópole”. A princípio, queria tocar piano, mas, aos poucos, sua mãe e seu primo Batista foram orientando-a na seleção de músicas para ela, de cantores como: Francisco Alves, Sílvio Caldas, Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, etc. No entanto, foi ouvindo “Canção de Amor” na voz de Elizeth Cardoso, “que Áurea Martins a adotou como madrinha musical”.
Assim, foi conquistando o espaço desejado no meio artístico. “Começou a cantar como cronner  no conjunto de Laureano”. Em seguida, no “conjunto de Waldir Leandro por cerca de um ano”. Seguiu. “Percorreu o caminho trilhado por grande parte das cantoras suburbanas cariocas”, isto é, chegar aos  “programas de calouros e de auditório das rádios de grande audiência”. Porém, a partir dos anos 70, a TV começa se impor sobre a radiofusão. Os artistas foram migrando gradativamente.
Áurea parte para a TV. Em pouco tempo iria participar da TV Globo e TV Tupi. Até chegar no programa A grande chance, de Flávio Cavalcanti. Não foi fácil ficar entre as 15 concorrentes finais no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. “Ele venceu as três eliminatórias cantando respectivamente “Encontro com a saudade“, de Billy Blanco e Nilo Queiroz; “João Valentão”, de Dorival Caymmi, e “Amor demais” de Ed Lincoln e Sílvio César” (1). 
A trajetória foi longa. Mas com dedicação e dona de um canto versátil, ela chegou para ficar como uma cantora da noite – modéstia à parte, a maior de todas entre tantas outras cantoras de mesmo oficio -, na zona sul carioca, entre 1970 e início de 1990. Apesar de ter de se adaptar, haja vista que estava “iniciando a carreira” e iria enfrentar as diversificações da noite. Tratava-se de um novo formato, uma nova configuração. Assim o fez: “Reorientou sua atividade profissional” (1).
Como nem tudo são flores, a cantora precisava sanar uns desajustes no seu próprio mundo. Por exemplo, “os anos de 1970 e de 1980 trouxeram para Áurea profundas mudanças em sua vida pessoal e profissional. No plano pessoal, ela viveu duas experiências de casamento. Passou a morar definitivamente na zona sul do Rio, experimentando a convivência mais estreita com uma nova cultura da metrópole e se distanciando do cotidiano familiar acolhedor dos trinta primeiros  anos de vida” (1).
Em 72 gravou seu primeiro LP, “O amor em paz“, pela RCA, produzido por Rildo Hora e de altíssimo nível técnico, com 14 faixas e participação especial do consagrado jornalista, escritor e poeta mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991) recitando trechos do seu poema “No princípio do amor“, em meio às canções Fim de Noite (Chico Feitosa-Ronaldo Bôscoli) e O Que Tinha de Ser (Tom-Vinicius). Além da “escolha primorosa dos integrantes do disco”. Trata-se de um trabalho valioso da nossa música e raro de ser encontrado. Outras canções desse LP: Canção que nasceu do amor (Rildo Hora-Clóvis Mello); O amor em paz (Tom-Vinicius); Ilusão à toa (Johnny Alf); Duas contas (Garoto), etc. 
Outra obra-prima de Áurea: É o CD Até Sangrar (2008), com participação especial João Donato, Alcione, Francis Hime e Emílio Santiago. São 14 faixas. Um verdadeiro passeio musical: de Herivelto Martins e David Nasser, com Pensando em ti, a Herbert Vianna e Paula Toller, com Nada por mim; de Lupicínio Rodrigues, com Há um adeus, a Ary Barroso, com Ocultei, e, por fim, com Francis Hime e Chico Buarque, com Embarcação, outras.
Por que “Até Sangrar”?  Hermínio Bello de Carvalho, responde: “Lembro quando Jamelão me cochichou, quando você foi chamada para cantar numa reunião caseira: “essa aí sabe das coisas”. Deu pra entender porque a Divina Elizeth saiu de casa à noite [coisa rara!] para ouvir outra cantora. E essa cantora era você. Há poucos dias, lá em casa, flagramos nossa Diva Zezé Gonzaga vertendo tais lágrimas de sangue [como já o tinha feito o Emílio Santiago] ao ouvir a prova deste deu disco. Quando contamos pra Alcione o título do disco, achamos lindo ela dizer: “Vou é giletar meus pulsos”. ATÉ SANGRAR” (2).
Outros trabalhos fonográficos de Áurea Martins: CD “Depontacabeça” (2010); CD/DVD “Iluminante” (2012). O LP “Alvorada dos novos” (1963), com Maracatu, hoje é um disco raro. O DVD “Iluminante” é magistral. São 18 músicas, incluindo as três extras. Produzido por Hermínio Bello de Carvalho, e participações especiais de Fernanda Montenegro (Narração); Chico Buarque, em Maninha, de sua autoria; Domingos Teixeira, em Embarcação (Hime-Buarque); e Vidal Assis, em Via Crucis, dele, Lucas Porto e Hermínio Bello de Carvalho.
Segundo Rodrigo Ferrari, nada melhor para comemorar os 20 anos da Livraria e Edições Folha Seca, que ter como forma marcante de sua identidade com a música, o futebol e a urbanidade carioca, do que oferecer ao publico, “através da pena carinhosa e criteriosa de Lúcia Neves, a biografia dessa cantora de carreira extraordinária, que confere um brilho especial à Música Popular Brasileira: Áurea Martins”.
Obviamente que ele refere-se à Lúcia Maria Wanderley Neves, Doutora em Educação pela UFRJ, “pesquisadora educacional, com produção acadêmica extensa e larga experiência em organização de livros. Mas recentemente vem se dedicando ao estudo sobre teoria da cultura e publicando na área de literatura” (1). Desde de 2005, já escreveu, organizou e publicou vários livros.
Segundo a autora, quando foi perguntada por Áurea, se aceitaria escrever sua biografia, ficou “arrepiada de emoção”. Pediu-lhe “um tempo para pensar”. Aceitou, portanto, o desafio e o resultado é esse livro fascinante dessa educadora maravilhosa, sobre outra “mulher maravilhosa”, ou seja, “Áurea cantora e Áurea gente (que) se imbricam nas aventuras da vida, perfazendo uma trajetória admirável” (1), completa a pesquisadora. 
Ela nos revela que, para a dinâmica do texto do livro, contou com o inegável apoio do pianista Zé-Maria Rocha, o qual, além de conhecer como poucos a história da música brasileira, considerável parte de sua vida tem sido ao lado de Áurea, seja como músico, amigo, conselheiro, ou como “consultor técnico”. Por isso, aqui está “um trabalho comprometido”, que vai “além da descrição de fatos”. “Um misto de história e literatura” (1).
“Áurea é uma cantora de sucesso. Não o sucesso imposto pelo mercado fonográfico, mas o sucesso do reconhecimento  da excelência do seu trabalho. Estas ideias justificam o título dessa biografia: Áurea Martins: a invisibilidade visível “, enfatiza a autora, que narra – em quatro capítulos – com muita clareza os caminhos percorridos para a pesquisa: os jornais, os arquivos, as entrevistas, e a própria biografada, cuja soma desses esforços “tem uma dupla finalidade”, isto é, que as gerações futuras possam saber dessa artista diferente, resistente, no canto popular brasileiro; e mostrar o quanto trata-se de “um ser humano surpreendente” e repleto de simplicidade, veracidade, versatilidade e, acima de tudo, generosidade. 
Por sua vez, o pianista Zé-Maria Rocha, diz (na Apresentação II) que acompanha a cantora há quase 40 anos. Portanto, já conhece bem “sua figura artística e humana”. E juntos, conversam não apenas sobre música e outros assuntos, mas sobretudo as “nossas vidas”. Por esse prisma, “a visibilidade de Áurea deve ser percebida no sentido horizontal de uma basílica”, pela grandeza de sua pessoa e de sua arte.
Alfredo Melo, o Alfredinho, dono do bar Bip Bip, que fica em Copacabana, em Prefácio I, garante que nos quase 50 de sua atividade, acompanha de perto a música brasileira – principalmente a da noite carioca -, inclusive a de Áurea, e nos declara com firmeza: O “nome começa e termina com a primeira letra do alfabeto: ÁureA. A dona da voz delicada e ao mesmo tempo rascante, tão afinada além dos limites da minha compreensão de leigo, a intérprete do timbre sereno e, quando quer, potente, a cantora que arranca as dores da alma da gente com seu solfejar de anjo, esta mulher fabulosamente talentosa e linda: É a estrela Áurea” (1).
O cineasta Zeca Ferreira, em Prefácio II – “O longa metragem da Áurea -, exterioriza  assim a sua emoção sobre a cantora: “É indescritível a felicidade de poder dão então essa pequena contribuição ao longa metragem da Áurea, feito com maestria pela Lúcia Neves”.
Sobre as fotos citadas nos início do artigo, nem precisa ser seu fã para para deslumbrar-se vendo Áurea entre tantas pessoas – sejam elas artistas, autoridades públicas ou não. A começar, as carteiras de identidade dos seus pais. Depois ao lado do irmão Elízio (78). Em Portugal, quando da premiação do programa A grande chance; com Paulo Moura, na Grécia. Com Sérgio Bitencourt; com o lendário Tony Bennett. Com: Alcione; Emílio Santiago; Djavan; Johnny Alf; Nana Caymmi; Roberto Ribeiro; Nelson Sargento; Vidal Assis; Zé-Maria Rocha; Alaíde Costa; Leila Pinheiro; Chico Buarque; Wilson das Neves; Diogo Nogueira, Rolando Boldrin; Rosa Passos; Fernanda Montenegro; o pianista Cristóvão Bastos, etc, etc, etc. Que maravilha! É o reconhecimento de gerações: de Sérgio Bittencourt a Diogo Nogueira. É o princípio da urbanidade, que acolhe pessoas. É a valoração  do ser.
E para finalizar, leia alguns versos de trechos do poema “No princípio do amor”, do poeta Paulo Mendes Campos que estão no meio das canções Fim de Noite e O Que Tinha de Ser, no LP de 72:

                    FIM DE NOITE
       
                    No princípio do amor, o humano se esconde,
                    bloqueado na terra das canções, astro acuado
                    em galáxias que se destroçam. E tudo
                    é nada: nasce a flor e morre o medo
                    que mascara a nossa face.
                                       (…)
                     O QUE TINHA DE SER

                     No princípio do amor, outro amor que nos precede
                     adivinha no espaço o nosso gesto. 
                     No princípio do amor, o fim do amor.
                     Folhagens irisadas pela chuva, 
                     varandas transpassadas de luz, poetes de ametista, 
                     palmeiras estruturadas para um tempo além do nosso tempo,
                     pássaros
                     fatídicos na tarde assassinada, ofuscação deliciosa
                     no lago – no princípio do amor já é amor.
             
Nós do Facetas, esperamos que essa deslumbrante cantora esteja bem e realizada, tanto pessoal quanto profissionalmente, como exclama o experiente Alfredinho Melo:
                 “SALVE, MIL VEZES SALVE, A GRANDIOSA ÁUREA MARTINS!”
Pesquisa e texto por Francisco Gomes
Fotos por Winnie Barros
Fontes
1. Neves, Lúcia. Áurea Martins: a invisibilidade visível. – RJ, Folha Seca, 2017.
2. CD “Ate sangrar“, de Áurea Martins, – RJ: Biscoito Fino, 2008.
3. DVD “Iluminante“, de Áurea Martins. – RJ: Estúdios da 24P, abril/2011, produzido por Hermínio Bello de Carvalho, p. 2012. 

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