“O leão, o burro e o rato”

Há muito tempo atrás, no reino do Rock in’roll, esteve entre nós, pobres terráqueos que somos, um ser vindo do espaço sideral o genial Raul Seixas (1945-1989), o qual cantava mais ou menos assim: “Hey, anos 80/Charrete que perdeu o condutor/Hey anos 80/Melancolia e promessas de amor/Melancolia e promessas de amor./Pobre país carregador dessa miséria…”

Hoje, em pleno século 21, a tal raça humana não para de produzir seus próprios horrores, suas misérias; suas garras são cada vez mais afiadas. Já não há mais charrete; condutor, nem pensar; promessas de amor? Quais promessas? Quais amores? E a melancolia? A essa sim. Está em toda parte: do Oriente ao Ocidente; em todos os Continentes.

Outro ser genial que esteve entre nós por um curto período de tempo (tempo na percepção dos humanos), depois partiu, foi Millôr Fernandes (1923-2012), nos deixou registros magistrais, entre eles fábulas fabulosas. Por sinal, foi considerado um dos maiores do mundo nesse gênero literário. Sabe-se que há “muitos e muitos séculos antes de Esopo, já havia lobos vestidos na pele de cordeiros, estuprando inocentes. Muito tempo antes do homem se organizar em Estado, já existiam lobos ferozes proibindo carneiros de beber sua água. O homem ainda não tinha pensado em construir cidades quando raposas finórias e sem escrúpulos arrancavam queijos do bico de corvos ingênuos. E quando o último homem apertar o último botão nuclear ainda haverá sapos coaxando nos pântanos, cantando as glórias e a sedução do lodo”(1).

Acervo pessoal

Vamos, então, à íntegra da Fábula XXXII, “O leão, o burro e o rato”, uma das mais espetaculares, entre as dezenas deixadas pelo multiartista que foi Millôr:

“Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada que haviam empreendido juntos (a conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum) e colocaram numa clareira tudo que tinham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca e muita caça menor. O leão sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:

– Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por favor, você, que é o mais sábio de nós três, com licença do compadre rato, você compadre burro, vai fazer a partilha dessa caça em três partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, até o rio, beber um pouco de água, deixando o nosso grande amigo burro em paz para deliberar.

Os dois se afastaram, foram até o rio, beberam água (enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato estava sujando a água que ele bebia) e ficaram um tempo. Voltaram e verificam que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:

– Pronto, compadre leão, ai está: que acha da patilha?

O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.

Sorrido, o leão voltou-se para o rato e disse:

– Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de que concorda em que não podíamos suportar a presença de tamanha inaptidão e borrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava mais o compadre burro. Me faça um favor agora – divida você o bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberação sensata.

Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza (os ratos devem se contentar em se alimentar de ratos. Como diziam os latinos: Similia similibus curantur) morto por acaso. O leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato o chamou:

– Compadre leão, está pronta a partilha!

O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde deixar de cumprimentar o rato:

– Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você chegou tão depressão a uma partilha tão certa?

E o rato respondeu:

– Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o meu – é claro que você precisa comer muito mais. Tracei uma comparação entre a sua força e a minha – é claro que você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha – e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!

– Inacreditável, inacreditável! Que compreensão. Que argúcia! – exclamou o leão, realmente admirado. – Olha, juro que nunca tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?

Na verdade, leão eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.

Moral: SÓ UM BURRO TENTA FICAR COM A PARTE DO LEÃO (1).

Enquanto bilhões de pessoas mundo afora aguardam um resultado positivo por parte dos donos da vacina contra a Covid, um pequeno grupo formado por leões, burros e ratos, seguem querendo o seu quinhão. Por aqui, no Brasil, somos o rato da fábula acima. Os perigos veem de todos os lados, inclusive de alguns leões nacionais. Amanhã, cenas dos próximos capítulos da novela “Vencidos e vencedores, uma questão de vida e morte no Planeta…”

Notinha de pesar – O Facetas lamenta a morte do cantor e compositor nordestino, o brasileiro Genival Lacerda, aos 89 anos (de 15.04.1931 a 07.01.2021). Ao longo de alguns anos, reunimos vários de sues LPs, das décadas de 70 e 80. Sua voz permanecerá viva como sempre, entre seus admiradores.

Por Francisco Gomes e Winnie Barros

Fonte: 1) Fernandes, Millôr. 100 Fábulas fabulosas. – 2ª ed. – RJ: Record, 2003, pp. 73/75.

Um comentário em ““O leão, o burro e o rato”

  1. Bom domingo meu nobre. Vc como sempre trazendo pra nossa realidade, fábulas fantástica como essa do grande Millor Fernandes. A comparação com a maioria de nossos políticos, que ora fazem do atual momento que estamos passando, a maior partilha, da grande caçada, pelos 3 animais da fábula.
    Uma fábula que traduz uma enorme sapiência, demonstrada pelo pequeno rato.
    “Nao se analisa o grau de conhecimento do ser humano, pelo seu tamanho e sim pela sua sabedoria”.

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